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sábado, 9 de janeiro de 2016

O DEVER DA INDIGNAÇÃO



No Brasil de 2016, a verdade incômoda, que muitos gostariam que esquecêssemos, é que a miséria campeia

DIEGO ESCOSTEGUY 


REVISTA ÉPOCA 09/01/2016 - 11h01
 


Em 4 de janeiro de 1960, um acidente de carro interrompia, aos 47 anos, a vida do franco-argelino Albert Camus, um dos escritores mais lúcidos do século XX. A obra de Camus é uma breve mas solar jornada rumo ao cume da montanha moral de nosso tempo. Como um Sísifo moderno, Camus rolou morro acima, em romances, peças e ensaios, a pedra de seu pensamento acerca do que define a condição humana num mundo sem Deus, no qual matanças em nome de ideologias são atos autorizados pela razão. Como o herói do mito grego, Camus, sempre que acreditava estar perto do topo, percebia-se condenado a reiniciar a jornada, por não encontrar o que buscava – um sentido para a devassidão moral do século XX. A imagem de Sísifo, consagrada pelo próprio Camus, definia a situação do homem moderno, vergado pelo absurdo da distância entre si mesmo e o mundo. O que mais poderia captar a essência da violência sem limites, a essência da fogueira política em que ardiam, sem cessar, a liberdade, a vida e a verdade, senão a noção do absurdo?

Cinquenta e seis anos após a derradeira queda de Camus, pouco poderia sobreviver do que ele escreveu, não tivesse o mundo – e os homens – permanecido o que sempre foi. Sem dúvida que, em muitos aspectos, o mundo de 2016 é melhor do que aquele que Camus deixou em 1960. Mas há algo de essencialmente igual nos problemas do homem e do mundo, apesar de todas as nuances políticas, sociais, tecnológicas, econômicas e culturais. A lista de misérias da humanidade é extensa e complexa. Guerras, tragédias, fome, atentados terroristas, assaltos, doenças, governos ineptos, governos liberticidas, governos corruptos – injustiças de toda sorte, enfim. Basta consultar o noticiário. Os infortúnios do homem estão sempre lá, dos maiores aos menores. O passar do tempo alterna somente os nomes das desgraças.

No Brasil de 2016, a verdade incômoda, que muitos gostariam que esquecêssemos, é que a miséria campeia. Além do autoritarismo e da violência que definem o país há décadas, converge-se neste momento, no absurdo da razão brasileira, para o ápice da supercrise política, criminal e econômica, que acomete o Brasil desde, ao menos, o início de 2015. Esse avançar aparentemente inexorável da crise rumo ao topo de si mesma ainda pode encontrar pelo caminho as ruas, ponto no qual os quatro pilares do desassossego brasileiro – político, econômico, criminal e social – esbarrariam perigosamente, com consequências sombrias para o país.

Enquanto esse momento não chega, se é que chegará, o transcorrer dos dias e dos duros fatos da crise acostuma-nos com o que não é normal, mas assim começa a nos parecer. Não é normal que o líder do governo no Senado esteja preso, assim como os principais chefes do partido que comanda o país. Não é normal que deputados, senadores e ministros sejam acusados de corrupção e continuem tranquilamente em seus cargos. Não é normal que a inflação bata recorde, os empregos sumam e a renda despenque. Não é normal que os políticos não consigam resolver politicamente, sem a supervisão da Suprema Corte, os problemas políticos que eles mesmos criaram. Muita coisa é normal; essas não são. Essas são absurdas.

E o que fazer diante do absurdo político? Para Camus, é preciso se revoltar. Essa revolta não significa pegar em armas – pelo contrário. Nem, necessariamente, ir às ruas. Significa, primeiro, “recusar-se a mentir sobre o que se sabe”, o que é mais difícil do que dizer a verdade. É um ato de rebeldia lúcida e sensata, que suprime o ceticismo confortável e o cinismo estúpido . Significa assumir o dever da indignação íntima com o que não pode, jamais, ser considerado normal. Significa aceitar, como Sísifo, rolar a pedra montanha acima, quantas vezes forem necessárias, mesmo que o normal permaneça no topo.

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