REVISTA ISTO É N° Edição: 2270, 20.Mai.13 - 10:56
A vitória na votação da MP dos Portos no Congresso não esconde os problemas da articulação política do Planalto e do fisiologismo da bancada governista
A vitória na votação da MP dos Portos no Congresso não esconde os problemas da articulação política do Planalto e do fisiologismo da bancada governista
Paulo Moreira Leite
Vista do terceiro andar do Palácio do Planalto, onde se encontra o gabinete de Dilma Rousseff, a aprovação da medida provisória que cria um novo marco regulatório para os portos brasileiros – essa passagem estratégica que acompanha nosso desenvolvimento desde o tempo de dom João VI – representa uma vitória maiúscula da presidenta. Ameaçada por uma rebelião de parlamentares que integram uma base de apoio teoricamente imensa, a MP foi debatida em menos de uma semana, numa guerra que assustou boa parte do governo. Na Câmara de Deputados, a votação levou 23 horas, uma das mais longas da história do Congresso, e produziu imagens inesquecíveis. Deputados foram fotografados enquanto dormiam em plenário. Também fizeram fila indiana para dividir um jantar na madrugada. Tarde da noite, um parlamentar chegou a ser conduzido de volta ao local de trabalho quando se encontrava levemente embriagado. Mas o placar final desfez falsas impressões geradas por tanta coreografia. Na Câmara, em razão de uma folgadíssima maioria a favor, a questão se resolveu por voto simbólico de lideranças. No Senado, o placar final foi de 57 votos a favor e 7 contra, além de cinco abstenções.
DESARTICULAÇÃO
O presidente da Câmara, Henrique Alves (à esq., de óculos),
é pressionado por parlamentares durante votação da MP dos Portos
Do ponto de vista do Congresso, a menos de um quilômetro do Planalto, a decisão deixou outras revelações. Dilma possui a mais ampla base de apoio parlamentar que um governo já formou em períodos democráticos. Em 2010, quando assumiu a missão de eleger sua herdeira, Lula empenhou-se também em lhe deixar uma maioria confortável no Congresso, evitando movimentos traumáticos como a CPI do mensalão, que quase lhe custou o mandato, ou a extinção da CPMF, derrota que privou a saúde pública de um financiamento garantido em lei. No palanque, Lula definiu adversários a atingir e até pediu voto contra. A base de apoio de Dilma é 39% maior que a de Fernando Henrique Cardoso e um terço maior que a de Lula. Com 39 ministérios, o governo Dilma dá abrigo, com quantias variadas de riqueza, poder de emprego e de voto, a 20 partidos. Atualmente, a oposição nominal limita-se a 20% do Congresso.
O sonho de um governo sem oposição costuma gerar a ilusão de que senadores e deputados podem ser tratados como alunos em sala de aula, que respondem de forma disciplinada à lista de chamada do professor. Mas isso é uma utopia. Os dias dramáticos da discussão da MP mostraram que não é assim. Com graus maiores ou menores de distorção, a política é sempre a expressão de interesses de uma sociedade – tanto em seus consensos quanto em seus conflitos. Quando falta espaço externo, os adversários ocupam o espaço interno, encontrando um novo caminho para transportar interesses. Embora alinhados com o Planalto, os dois lados envolvidos nos debates sobre a MP dos Portos participavam de um baile de máscaras sujeito a múltiplas interpretações.
Havia interesses econômicos tanto por parte de empresas sedentas por entrar no negócio, alinhadas com o governo, como daquelas já estabelecidas, sem a menor disposição de serem prejudicadas, sintonizadas com o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), titular de um movimento muito maior do que o dos 40 parlamentares que circulam à sua volta. Acompanhado por uma nuvem de acusações que jamais foram demonstradas na Justiça, Cunha é aquilo que a oposição nominal não consegue ser. Articula, confronta o governo e mostra eficiência na defesa de seus propósitos. Há duas semanas, seus aliados produziram uma típica guerra de torcidas no plenário da Câmara, impedindo uma primeira votação da medida provisória, situação que levou o governo a agir rapidamente. Não era só por causa do destino das mercadorias nos portos nem pelas filas de caminhões nos arredores. Uma derrota mudaria o equilíbrio de forças políticas de Brasília, transformando Cunha e sua legião de descontentes em novo foco de poder.
A protagonista da reação foi Dilma. Ela reuniu Renan Calheiros, Henrique Alves, Michel Temer e o ministro da Fazenda, Guido Mantega, para deixar claro que o governo não iria jogar a toalha. O relator Eduardo Braga foi autorizado a aceitar mudanças que até então eram inegociáveis, mas ninguém iria abrir mão do projeto. A ministra Ideli Salvatti, das Relações Institucionais, foi informada de que deveria dizer ao líder do governo, Arlindo Chinaglia (PT-SP), que havia chances de liberar as célebres emendas de parlamentares. Os jornais chegaram a falar num pacote de R$ 1 bilhão, mas pelo menos até o dia da votação nenhum centavo fora empenhado. Ainda assim, a mensagem funcionou. Ajudou a desmanchar um protesto coletivo de parlamentares que, cruzando os braços, ameaçavam abandonar o governo e nem aparecer para votar. Mobilizados pelo Planalto, sob o risco de perder os empregos em caso de fiasco, os ministros Aguinaldo Ribeiro, das Cidades, que é filiado ao PP, e Antônio Andrade, da Agricultura, que é do PMDB, foram atrás das respectivas bancadas. Presidente do PTB, Roberto Jefferson telefonou do Rio de Janeiro para pedir moderação ao deputado Silvio Costa (PTB-PE), que chamara a votação de “palhaçada.”
No Senado, o voto se deu em clima de manada. Não há notícia de que, em menos de 24 horas, alguém tenha sido capaz de ler a íntegra da medida provisória, com todas as emendas e destaques, um calhamaço superior a mil páginas. Pela manhã, Dilma ligou para o presidente do Senado, Renan Calheiros, pedindo empenho. Renan prometeu o possível e, reunindo os líderes aliados, acertou que iriam driblar normas e convenções para garantir a votação no prazo combinado. Para tranquilizar os presentes, Renan prometeu aos demais senadores que seria “a última vez”.
Com outras sete medidas provisórias pela frente, sem falar no próximo Orçamento, que terá o mesmo Eduardo Cunha como relator, é difícil imaginar que Renan será capaz de manter a palavra. Mesmo que conte com o auxílio de Claudia Lyra, a eficiente secretária da Mesa que, enciclopédia ambulante quando o assunto é regimento interno, salvou o presidente de várias armadilhas em que a oposição tentou colocá-lo na quinta-feira. Há uma questão de fundo e ela é política. Já passou o tempo em que os parlamentares aliados se queixavam do “estilo Dilma”, eufemismo para dizer que tomava as decisões de modo centralizado, sem consultas nem consideração pelo ponto de vista de seus interlocutores. Eles se sentem abandonados por verbas, que não aparecem para as emendas – legítimas ou não – que querem enviar a seus eleitores. Também se sentem desprestigiados, como se o Planalto ignorasse que cada membro do Congresso representa 1/594 de um dos três poderes da República. A votação da medida provisória mostrou uma bancada imensa mas indiferente, com mais gordura do que músculos, disposta a assustar e até a trair – e isso é motivo de preocupação de qualquer governo.
NO SENADO, NÃO HÁ NOTÍCIA DE QUE, EM MENOS DE 24 HORAS,
ALGUÉM TENHA LIDO UM CALHAMAÇO COM MAIS DE MIL PÁGINAS
Vista do terceiro andar do Palácio do Planalto, onde se encontra o gabinete de Dilma Rousseff, a aprovação da medida provisória que cria um novo marco regulatório para os portos brasileiros – essa passagem estratégica que acompanha nosso desenvolvimento desde o tempo de dom João VI – representa uma vitória maiúscula da presidenta. Ameaçada por uma rebelião de parlamentares que integram uma base de apoio teoricamente imensa, a MP foi debatida em menos de uma semana, numa guerra que assustou boa parte do governo. Na Câmara de Deputados, a votação levou 23 horas, uma das mais longas da história do Congresso, e produziu imagens inesquecíveis. Deputados foram fotografados enquanto dormiam em plenário. Também fizeram fila indiana para dividir um jantar na madrugada. Tarde da noite, um parlamentar chegou a ser conduzido de volta ao local de trabalho quando se encontrava levemente embriagado. Mas o placar final desfez falsas impressões geradas por tanta coreografia. Na Câmara, em razão de uma folgadíssima maioria a favor, a questão se resolveu por voto simbólico de lideranças. No Senado, o placar final foi de 57 votos a favor e 7 contra, além de cinco abstenções.
DESARTICULAÇÃO
O presidente da Câmara, Henrique Alves (à esq., de óculos),
é pressionado por parlamentares durante votação da MP dos Portos
Do ponto de vista do Congresso, a menos de um quilômetro do Planalto, a decisão deixou outras revelações. Dilma possui a mais ampla base de apoio parlamentar que um governo já formou em períodos democráticos. Em 2010, quando assumiu a missão de eleger sua herdeira, Lula empenhou-se também em lhe deixar uma maioria confortável no Congresso, evitando movimentos traumáticos como a CPI do mensalão, que quase lhe custou o mandato, ou a extinção da CPMF, derrota que privou a saúde pública de um financiamento garantido em lei. No palanque, Lula definiu adversários a atingir e até pediu voto contra. A base de apoio de Dilma é 39% maior que a de Fernando Henrique Cardoso e um terço maior que a de Lula. Com 39 ministérios, o governo Dilma dá abrigo, com quantias variadas de riqueza, poder de emprego e de voto, a 20 partidos. Atualmente, a oposição nominal limita-se a 20% do Congresso.
O sonho de um governo sem oposição costuma gerar a ilusão de que senadores e deputados podem ser tratados como alunos em sala de aula, que respondem de forma disciplinada à lista de chamada do professor. Mas isso é uma utopia. Os dias dramáticos da discussão da MP mostraram que não é assim. Com graus maiores ou menores de distorção, a política é sempre a expressão de interesses de uma sociedade – tanto em seus consensos quanto em seus conflitos. Quando falta espaço externo, os adversários ocupam o espaço interno, encontrando um novo caminho para transportar interesses. Embora alinhados com o Planalto, os dois lados envolvidos nos debates sobre a MP dos Portos participavam de um baile de máscaras sujeito a múltiplas interpretações.
Havia interesses econômicos tanto por parte de empresas sedentas por entrar no negócio, alinhadas com o governo, como daquelas já estabelecidas, sem a menor disposição de serem prejudicadas, sintonizadas com o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), titular de um movimento muito maior do que o dos 40 parlamentares que circulam à sua volta. Acompanhado por uma nuvem de acusações que jamais foram demonstradas na Justiça, Cunha é aquilo que a oposição nominal não consegue ser. Articula, confronta o governo e mostra eficiência na defesa de seus propósitos. Há duas semanas, seus aliados produziram uma típica guerra de torcidas no plenário da Câmara, impedindo uma primeira votação da medida provisória, situação que levou o governo a agir rapidamente. Não era só por causa do destino das mercadorias nos portos nem pelas filas de caminhões nos arredores. Uma derrota mudaria o equilíbrio de forças políticas de Brasília, transformando Cunha e sua legião de descontentes em novo foco de poder.
A protagonista da reação foi Dilma. Ela reuniu Renan Calheiros, Henrique Alves, Michel Temer e o ministro da Fazenda, Guido Mantega, para deixar claro que o governo não iria jogar a toalha. O relator Eduardo Braga foi autorizado a aceitar mudanças que até então eram inegociáveis, mas ninguém iria abrir mão do projeto. A ministra Ideli Salvatti, das Relações Institucionais, foi informada de que deveria dizer ao líder do governo, Arlindo Chinaglia (PT-SP), que havia chances de liberar as célebres emendas de parlamentares. Os jornais chegaram a falar num pacote de R$ 1 bilhão, mas pelo menos até o dia da votação nenhum centavo fora empenhado. Ainda assim, a mensagem funcionou. Ajudou a desmanchar um protesto coletivo de parlamentares que, cruzando os braços, ameaçavam abandonar o governo e nem aparecer para votar. Mobilizados pelo Planalto, sob o risco de perder os empregos em caso de fiasco, os ministros Aguinaldo Ribeiro, das Cidades, que é filiado ao PP, e Antônio Andrade, da Agricultura, que é do PMDB, foram atrás das respectivas bancadas. Presidente do PTB, Roberto Jefferson telefonou do Rio de Janeiro para pedir moderação ao deputado Silvio Costa (PTB-PE), que chamara a votação de “palhaçada.”
No Senado, o voto se deu em clima de manada. Não há notícia de que, em menos de 24 horas, alguém tenha sido capaz de ler a íntegra da medida provisória, com todas as emendas e destaques, um calhamaço superior a mil páginas. Pela manhã, Dilma ligou para o presidente do Senado, Renan Calheiros, pedindo empenho. Renan prometeu o possível e, reunindo os líderes aliados, acertou que iriam driblar normas e convenções para garantir a votação no prazo combinado. Para tranquilizar os presentes, Renan prometeu aos demais senadores que seria “a última vez”.
Com outras sete medidas provisórias pela frente, sem falar no próximo Orçamento, que terá o mesmo Eduardo Cunha como relator, é difícil imaginar que Renan será capaz de manter a palavra. Mesmo que conte com o auxílio de Claudia Lyra, a eficiente secretária da Mesa que, enciclopédia ambulante quando o assunto é regimento interno, salvou o presidente de várias armadilhas em que a oposição tentou colocá-lo na quinta-feira. Há uma questão de fundo e ela é política. Já passou o tempo em que os parlamentares aliados se queixavam do “estilo Dilma”, eufemismo para dizer que tomava as decisões de modo centralizado, sem consultas nem consideração pelo ponto de vista de seus interlocutores. Eles se sentem abandonados por verbas, que não aparecem para as emendas – legítimas ou não – que querem enviar a seus eleitores. Também se sentem desprestigiados, como se o Planalto ignorasse que cada membro do Congresso representa 1/594 de um dos três poderes da República. A votação da medida provisória mostrou uma bancada imensa mas indiferente, com mais gordura do que músculos, disposta a assustar e até a trair – e isso é motivo de preocupação de qualquer governo.
NO SENADO, NÃO HÁ NOTÍCIA DE QUE, EM MENOS DE 24 HORAS,
ALGUÉM TENHA LIDO UM CALHAMAÇO COM MAIS DE MIL PÁGINAS
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