FOLHA.COM 14/05/2014 02h00
Valdemir Pires
A organização federativa do Brasil é um dado histórico de grande valor. Embora criada de cima para baixo, foi se consolidando e permitindo a ocupação do território nacional e a presença e atuação do Estado de modo relativamente eficiente, tendo em vista a imensidão do território, as desigualdades de todos os tipos, a fraca tradição republicana e a perene insuficiência de recursos.
Politicamente, o federalismo brasileiro atual é muito eficaz. Encadeia relacionamentos partidários e interpessoais –nas esferas do poder e nos espaços de disputa por ele–, de cima para baixo e de baixo para cima, de modo singularmente funcional. Dado o perfil relativamente apático e propenso a barganhas do eleitorado médio, vereadores, prefeitos, governadores, deputados (estaduais e federais), senadores e presidente convivem no poder sob uma rede intrincada de governabilidade densamente populista, que, por incrível que possa parecer, não é de todo maléfica.
Mas uma nação que se leve a sério não pode ficar ancorada em águas tão rasas e turvas. Ainda mais se tratando de quem "inventou" os orçamentos participativos (OPs) e está às voltas com uma densa estrutura de instituições participativas (IPs).
Administrativamente, a República Federativa do Brasil é um arranjo caro, de qualidade duvidosa, no qual a base –os 5.570 municípios– não passa de braço frágil de uma estrutura de governança e gestão que bem poderia abrir mão de ter governos locais com dois poderes, conduzidos por agentes eleitos periodicamente, já que o grosso das decisões que tomam poderiam ficar a cargo de funcionários públicos capacitados (pertencentes ao Estado e/ou à União) em diálogo com delegados locais, com mandatos não remunerados. Exceto no caso dos médios e grandes (os poucos com mais de 50 mil habitantes), que poderiam, estes sim, ter um tratamento político diferenciado.
Claro, isso tudo idealmente pensando, pois ninguém é suficientemente inocente para propor uma coisa dessas conhecendo a história que conduziu os municípios ao que hoje são. Mas, também evidentemente, questões dessa natureza não deveriam ser simplesmente esquecidas quando se pensa nas inovações que se fazem necessária no federalismo brasileiro.
Será que se o administrativo falasse mais alto do que o político, ao invés de haver uma tendência (a muito custo refreada) de ampliar o número de municípios e de agentes políticos locais remunerados, não aconteceria o contrário: tendência à redução dos agentes políticos e de junção (ao invés de separação) entre municípios?
Econômica, orçamentária e financeiramente, o federalismo brasileiro (federalismo fiscal, no caso) é manco e torto. A imensa maioria dos municípios (pequenos ou minúsculos, municípios sem cidades) não tem como se sustentar com receitas próprias, vivendo de transferências compulsórias, basicamente da União, e de algumas migalhas obtidas por vias conveniadas, nem sempre acessíveis por insuficiência de capacitação para elaborar e gerir os projetos necessários para conveniar. Correm atrás das famigeradas "emendas parlamentares", menos solução econômico-financeira para os governos locais e mais moeda de troca dos deputados estaduais e federais. Do ponto de vista das despesas, gastam o grosso do que auferem com políticas públicas (especialmente saúde e educação) delineadas e implementadas ao sabor de decisões que lhes escapam e, quando não, terminam sendo motivadas por interesses que não os públicos (a exemplo do que ocorreu com muitos casos de municipalização do ensino básico, mais para receber recursos adicionais do que para melhorar os níveis da educação). Se uma ponte cair, tem município que não dispõe de recursos para reergue-la, ou seja, naquilo que mais caberia ao poder local –gestão urbana– pouco podem as prefeituras.
Com muitos municípios (poderes públicos) para poucas cidades (entendidas como "organismos" vivos da organização socioeconômica dotada de características culturais próprias), com baixa capacidade de gestão e muita disputa política em função de interesses fora de seu território, a precariedade da base do federalismo fiscal brasileiro só a duras penas poderia resistir a um recuo na capacidade arrecadatória da União e dos Estados, trazida por uma hipotética crise econômica que afetasse os níveis muito favoráveis de receita de que vêm desfrutando desde 2003, sob os rigores da Lei de Responsabilidade Fiscal (lei complementar nº 101/00).
É preciso, pois, recolocar o federalismo na agenda do dia, não só o fiscal, nem só por causa das debilidades apenas dos municípios, mas também dos Estados e da União (a esfera da qual, aliás, a Constituição de 1988 depenou recursos sem reduzir responsabilidades).
Esperar o apodrecimento institucional não é comportamento de quem deseja preservar o fruto. No caso, fruto de muito acúmulo histórico que, como já se disse, tem seu lado bom e notável.
VALDEMIR PIRES, 50, economista, é professor de finanças públicas e pesquisador do Grupo de Pesquisa sobre Controle Social do Gasto Público do Departamento de Administração Pública da Universidade Estadual Paulista (Unesp)
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