Juarez Guedes Cruz*
A propósito do filme Lincoln, de Spielberg, há muita gente comparando as manobras políticas do 16º presidente dos Estados Unidos no sentido de aprovar a emenda abolicionista na Constituição americana aos ardis e tramoias do mensalão brasileiro. O raciocínio, falacioso, é mais ou menos este: se até um gigante do porte de Lincoln recorreu ao suborno para aprovar a referida emenda, por que aqui não pode? Nada mais descabido. A diferença abissal, não considerada nesse tipo de discurso, é o desígnio que motiva tais estratégias. A intenção que as move.
Em primeiro lugar, os fatos: grande parte da atividade presidencial de Abraham Lincoln foi dedicada à luta contra a escravatura negra nos Estados Unidos. Em continuidade ao projeto que iniciara em 1858 – quando, ao disputar uma vaga ao Senado, promovera uma série de debates em torno da escravidão em territórios americanos – em 22 de setembro de 1862, já na condição de presidente, Lincoln proclamara a liberdade irrestrita aos escravos dos Estados confederados. Isso abriu o caminho para que, em 1865, os escravos fossem libertos em todo o país. Lincoln pagou tal conquista com a própria vida: em um discurso idealista, pronunciado em 11 de abril de 1865, prometia, para muito pouco tempo, direito de voto aos negros. E esse foi o estopim para que, alguns dias depois, fosse assassinado por um fanático. Mas a chama que Lincoln acendeu com seu esforço não se apagaria: os negros não só conquistaram tal direito como, em 2008, os Estados Unidos elegiam seu primeiro presidente negro.
Vejamos agora os fatos que, no Brasil, foram falsamente levados à comparação que mencionei nas primeiras linhas: o neologismo “mensalão”, popularizado por Roberto Jefferson, é uma variante da palavra “mensalidade”, usada para se referir a uma “mesada” sistemática paga a deputados federais brasileiros para votarem a favor de projetos de interesse do Poder Executivo. O termo, diga-se de passagem, já era de uso comum entre os parlamentares para designar essa prática ilegal. Ou seja, a compra de votos com dinheiro público para financiar causas que, nem de longe, é fácil constatar, possuíam a magnitude social e a grandeza humanitária do projeto de Lincoln.
Esses são os dados. E nos ajudam a compreender a enorme diferença entre a estratégia de Lincoln e os enredos concebidos e praticados em Brasília. Também nos possibilitam entender o absoluto silêncio dos principais envolvidos no mensalão: ao contrário de Lincoln, que sempre, e às claras, podia se posicionar na defesa de suas ideias, os implicados no mensalão não possuíam qualquer projeto humanitário que justificasse suas encobertas manobras. Na versão norte-americana, a ideia central era acabar com a doença da escravidão. Na versão dos nossos políticos, pelo visto, a ideia era simplesmente a manutenção do poder a qualquer preço.
Como diriam os jovens de hoje, poderíamos repetir para os que pretendem equiparar as tramas dos políticos corruptos com a estratégia do líder Abraham Lincoln: menos! Triste, inclusive, mencionar, na mesma linha de um texto, o estadista americano e seus simulacros brasileiros.
*MÉDICO
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