REVISTA VEJA, Edição 2343, 16/10/2013
Sérgio Lazzarini
O professor do Insper diz que o aumento do intervencionismo do governo na economia emula os mesmos princípios da ditadura e abre espaço para ainda mais corrupção
Diretor de pesquisas do Insper, escola de economia e negócios em São Paulo, Sérgio Lazzarini é especialista nas interconexões — escancaradas e veladas — que existem entre as empresas e o Estado brasileiro. No livro Capitalismo de Laços, publicado em 2010, ele revelou a influência do setor público na economia nacional, inclusive nas empresas que foram privatizadas na década de 90 e deveriam estar a salvo do jugo governamental. No início do próximo ano, Lazzarini publicará A Reinvenção do Capitalismo de Estado: a Evolução do Leviatã. Em coautoria com o mexicano Aldo Musacchio, professor da Escola de Negócios da universidade americana Harvard, o livro será lançado primeiramente em inglês. Lazzarini é Ph.D. em administração e tem 42 anos.
O intervencionismo estatal está aumentando no Brasil?
Sem dúvida. Há um retomo ao que eu chamo de "Leviatã majoritário"" (o filósofo inglês Thomas Hobbes definiu o Estado como um monstro, o Leviatã, com poder absoluto sobre os indivíduos). Foi esse o modelo que preponderou durante a ditadura militar. Naquele tempo, o governo era o dono de várias empresas estatais, que dominavam uma fatia muito grande da economia. Petrobras. Eletrobras e Telebras são os exemplos mais notáveis. Com as privatizações na década de 90, passou-se ao estágio do "Leviatã minoritário". O governo continuou presente nas empresas, mas com um poder menor. Isso aconteceu principalmente por meio dos fundos de pensão e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que viraram grandes acionistas. No segundo mandato do presidente Lula, a tendência de encolhimento do Estado foi revertida. O BNDES passou a conceder financiamentos a juros camaradas para realizar fusões entre grandes empresas.
A ideia básica era sacrificar a competição no mercado nacional, que ficou fortemente concentrado, forjar campeões nacionais" e lançar produtos no exterior, o que raramente aconteceu. Foi o caso da Oi que surgiu após a compra da Brasil Telecom, e da BRF, com a aquisição da Sadia pela Perdigão. Com Dilma Rousseff. a intromissão estatal se acentuou. Ela decidiu-se pela intervenção direta na Petrobras para conter o aumento no preço da gasolina. No setor bancário, obrigou a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil a cobrar juros mais baixos. No elétrico, pressionou as empresas a reduzir o valor das contas de luz, o que reforçou o papel da Eletrobras. estatal. Dilma está levando o Brasil novamente em direção ao Leviatã majoritário.
A Portugal Telecom fundiu-se no início de outubro à Oi, uma "campeã nacional" que contava com investimentos do BNDES. O que aconteceu?
As ações caíram muito e as dívidas cresceram.O negócio deu errado. O interessante é que o BNDES não disse ainda se está saindo da companhia, como mandam as boas práticas administrativas.
A mensagem do banco estatal para as outras firmas em que investe é a de que não é preciso ser lucrativo para ter o seu apoio. Isso é muito ruim.
De onde vem o ardor estatista da presidente Dilma Rousseff?
Quando se olha para os princípios técnicos, fica evidente que há muitas semelhanças entre o atual governo e os da ditadura, principalmente no período de Ernesto Geisel, quando o número de estatais aumentou consideravelmente e muito capital público foi direcionado a grupos privados. As empresas estrangeiras estavam presentes, mas a participação delas era mais bem-vista onde sabidamente faltava competência local. A visão era a de que o desenvolvimento industrial deveria ter forte participação do Estado, com ênfase na produção local. Em um de seus livros, o jornalista Elio Gaspari contou um caso muito interessante que se deu quando Geisel era presidente da Petrobras. O general cancelou a concessão de postos de gasolina da Shell argumentando que "encher tanque de gasolina nós sabemos...". Na essência, essa é a visão preponderante no governo atual. Se dependesse da vontade de Brasília, os novos aeroportos entregues à concessão privada ainda esta-riam sob o controle majoritário da Infraero. Portanto, a meu ver. em termos de princípios econômicos. Dilma não é muito diferente dos militares.
A intervenção estatal na economia brasileira, porém, foi vital para evitar os impactos da crise mundial de 2008, não?
Quando a crise financeira deu as caras, em 2008, o Brasil não foi muito atingido. O governo então colocou ainda mais dinheiro nas empresas públicas e privadas, principalmente em créditos do BNDES. Para os burocratas, o diagnóstico é de que o socorro estatal salvou a economia da crise. Mas essa não foi a única nem a mais forte razão. O Brasil resistiu porque a China continuou crescendo e importando nosso minério de ferro e produtos agrícolas.
Mas houve uma fase inicial em que a atuação do BNDES e do governo parecia fazer mais sentido, correto?
Sim. Não houve problema no primeiro momento porque o dinheiro público estava retornando aos cofres públicos na forma de dividendos das estatais e do próprio BNDES. Agora, o mundo todo desacelerou. O capital que foi emprestado pelo governo a muitos empresários não será produtivo e haverá problemas para recuperar os investimentos. Há quatro anos, a imagem que existia do Brasil no exterior era a do Cristo Redentor decolando como um foguete, como mostrou a capa da revista inglesa The Economist. Isso é passado. A mesma revista fez uma capa recente em que o foguete Brasil está fora de controle.
Os problemas estruturais brasileiros são sobejamente conhecidos e não precisamos dos ingleses para apontá-los. A questão é se existe alguma chance de o Brasil resolvê-los. Qual é a sua opinião?
Com a equipe econômica atual não existe a menor chance. Ela obedece a um modelo mental rígido. Não há nenhum integrante do atual time econômico em Brasília que pense de maneira diferente. Para todos eles, as soluções dos problemas passam necessariamente pelo governo. Quando surge uma nova crise, a reação é sempre aumentar a presença do Estado na economia, quando a reação deveria ser em sentido contrário.
O Brasil está adquirindo a doença terminal da Argentina, país que se tomou um pária no mercado mundial?
Estamos caminhando nessa direção. O teste de fogo será a inflação. Caso os preços continuem subindo sem parar, como muitos economistas estão prevendo, a reação do governo brasileiro pode ser ainda mais desastrosa. Não duvido que o governo recorra aos mecanismos de controle de preços. Acho que a presidente Dilma tem uma coceirinha para fazer isso, mesmo que seja mais do que provado que esse tipo de medida nunca funcionou em nenhum lugar do mundo. Seria, repito, um desastre para o Brasil.
O senhor acha que o governo entende as consequências negativas de segurar artificialmente o preço da gasolina?
Ao conter a elevação dos preços de maneira direta, o governo criou um enorme problema de caixa para a Petrobras. A estatal do petróleo poderá ter déficits ainda maiores daqui para a frente. O governo deve saber que causou prejuízos enormes aos investidores minoritários da Petrobras. Entre eles estão grandes investidores estrangeiros, mas também milhões de brasileiros que investiram parte do seu suado FGTS na Petrobras. Outro efeito tremendamente negativo de segurar o preço da gasolina e esvaziar o caixa da Petrobras é que vai faltar dinheiro para as novas explorações do pré-sal. As intervenções estatais geram insegurança. Isso derruba o valor das companhias. No caso da Petrobras, melhor seria se o governo não tivesse feito nada para segurar o preço da gasolina. Agora o custo será alto.
A Agência Nacional do Petróleo (ANP) está exigindo agora que a Petrobras invista para aumentar a produção, que está em queda. A empresa tem as condições necessárias para isso?
No Brasil, há uma enorme confusão sobre o real papel das agências reguladoras. As agências não podem nem devem fazer algo assim, tão diretamente. Isso só atrapalha.
Estamos condenados no Brasil a ter a mão do Estado cada vez mais pesada?
A impressão que se tem ao conversar com empresários é que isso é um fato da vida. Eles dizem que sempre apoiam um político. É por segurança. Querem ter certeza de que, quando vier uma mudança nas regras do jogo, eles, pelo menos, terão para quem ligar. Ou seja, eles sentem que estão sempre sujeitos a sofrer os efeitos de algum tipo de intervenção. As grandes empresas apoiam mais de um partido durante a campanha eleitoral para garantir que. seja qual for o resultado das urnas, elas sempre tenham interlocução em Brasília.
Há evidências de que isso funciona?
Nós comprovamos com pesquisas que as empresas que mais doaram a políticos vencedores de eleições são as que mais receberam recursos públicos depois da posse do eleito. Em 2011, em um estudo que fiz em colaboração com pesquisadores de Harvard, da Fundação Getúlio Vargas e da Universidade do Vale do Itajaí, descobrimos a existência de uma relação direta entre o apoio a um candidato bem-sucedido e a obtenção de recompensas mais tarde. A pesquisa mostrou que, em média, uma grande empresa recebe 28 milhões de dólares, em empréstimos ou outras formas de apoio, do BNDES, para cada deputado, governador, senador eleito com seu apoio. Esses números são incontestáveis. A relação é indiscutível.
As privatizações dos anos 90 já não deveriam ter encolhido o Estado brasileiro?
O tamanho foi reduzido, mas isso não significa que o governo perdeu músculos. Durante aquele processo, os grupos de oposição impediram que fosse feita uma privatização verdadeira. Com raras exceções, como a Inglaterra de Margaret Thatcher, as privatizações não tiraram o Estado da economia de mercado. Na Europa, na América Latina e na Ásia, as estatais estão entre as companhias mais comercializadas nas bolsas. Entre os Brics (Brasil, Rússia, índia e China), os governos participam do capital de 30% a 50% do valor total das empresas no mercado. Nos Estados Unidos, esse índice é próximo de zero. Na Inglaterra, é de 3,7%. No Chile, mais perto da gente, é de 1.3%. No Brasil, o próprio presidente Fernando Henrique, que comandou as maiores privatizações, admitiu que não teria sido possível passá-las totalmente para a gestão privada. Para viabilizar o processo, FHC admitiu nas empresas privatizadas a participação dos fundos de pensão, que investem na aposentadoria dos funcionários públicos, e do BNDES. Como o governo se manteve firme nas antigas estatais e está presente em inúmeras empresas privadas que dependem do BNDES, é tolo achar que os empresários no Brasil possam tocar seu negócio sem um olho na política. Na atual situação, é mais crucial para eles fazer a ronda por Brasília do que, propriamente, cuidar da estratégia corporativa.
Uma ex-estatal não deveria simplesmente se desligar do governo?
Seria o mais lógico e eficiente. Mas no Brasil isso não acontece assim. Veja o caso da Vale, que foi privatizada em 1997. Mais de uma década depois, em 2009. a mineradora ainda estava submetida aos desejos do governo. O então presidente Lula decidiu que a Vale deveria investir em siderurgia no Brasil. Do ponto de vista econômico, não fazia o menor sentido investir na produção de aço no país. Havia uma enorme capacidade ociosa nesse setor. Lula também pressionou para a Vale comprar navios feitos no Brasil a um preço muito maior do que o do mercado internacional.
O então presidente da Vale, Roger Agnelli, em benefício da saúde da empresa. resistiu à pressão e foi demitido. Sem um controlador privado majoritário, a Vale, mesmo privatizada, continua refém dos fundos estatais de pensão e do BNDES, que, por sua vez, obedecem ao presidente de República. O Brasil criou esses monstrengos híbridos que são a cara do nosso capitalismo de laços.
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