Objetivo era fingir ataque de traficantes, espalhar medo na favela e, assim, reconquistar apoio no Morro do Barbante
12 de outubro de 2013 | 16h 00
O Estado de S. Paulo
Na noite de 19 de agosto de 2008, 17 homens encapuzados entraram atirando na comunidade do Barbante, em Campo Grande, zona oeste do Rio, e mataram aleatoriamente sete moradores que cruzaram seu caminho. O que, de início, parecia mais uma ação de terror orquestrada por traficantes mostrou, após as investigações da Polícia Civil, tratar-se de uma chacina de intenção meramente eleitoral – o massacre foi efetuado por um grupo de policiais, bombeiros e ex-militares integrantes de uma milícia.
O grupo forjara uma ofensiva de traficantes para causar medo e reconquistar o apoio perdido na comunidade e eleger a candidata a vereador Carmen Glória Guinâncio Guimarães, a Carminha Jerominho, do PT do B. Outras cinco testemunhas da chacina foram mortas depois pelo mesmo bando.
A milícia se sustentava na região com os serviços de segurança privada, transporte coletivo irregular, gás, máquinas caça-níquel e a instalação da "gatonet", como são conhecidas as ligações clandestinas de TV a cabo.
Um dos encapuzados, segundo a Polícia Civil, era o ex-policial militar Luciano Guimarães, irmão de Carminha Jerominho, filho do vereador Jerominho Guimarães (PMDB) e sobrinho do ex-deputado estadual Natalino Guimarães (DEM), todos chefes de milícias.
‘Liga da Justiça’. A 30 dias das eleições, os quatro membros da organização que se intitulava "Liga da Justiça" foram presos. O grupo usava como símbolo o morcego, numa alusão a Batman, o personagem da história em quadrinhos.
Carminha Jerominho foi acusada de coação eleitoral. Da cadeia de segurança máxima de Catanduvas, no Paraná, ela foi eleita com 22 mil votos. O pai, o tio e o irmão ainda estão presos, acusados de formação de quadrilha e homicídio.
Carminha foi solta duas semanas depois de conquistar a cadeira de vereadora. A defesa alegou que o fim do processo eleitoral extinguia possíveis constrangimentos de eleitores. Ela cumpriu seis meses de mandato até ser cassada.
O Tribunal Regional Eleitoral (TRE) alegou que Carminha arrecadou recursos para a campanha antes do prazo permitido. Em 2011, ela conseguiu liminar e voltou ao cargo. Os 6 mil votos recebidos na disputa do ano passado, porém, não lhe garantiram a reeleição.
As vítimas da chacina não tinham ligação com o tráfico na comunidade do Barbante – apenas tiveram a infelicidade de estar no lugar errado, na hora errada. O funcionário da Caixa Econômica Federal Dario Leoneza, 60 anos, foi um dos mortos no ataque. Morador do bairro Paciência, Dario estava no Morro do Barbante para visitar amigos. Anos antes, perdera a mulher, Lúcia, vítima de câncer.
Dario criava cinco filhos, incluindo os que nasceram fora do casamento. Ele vivia a expectativa de uma aposentadoria. Era um homem extrovertido, torcedor do Flamengo e frequentador assíduo de pagodes. "Foi um homem que só deixou boas lembranças", diz a cunhada Gilcéia de Paula Leoneza.
Também foram fuzilados pelos milicianos o padeiro Ariovaldo da Silva Nunes, de 37 anos, o motorista Bruno Sérgio Manhães Ayres Batista, 27, o comerciante Francisco Rezende de Oliveira, 40, o estudante Maicon de Azevedo Portela, 23, e duas pessoas que não foram identificadas pela polícia.
Testemunhas. No desenrolar das investigações, testemunhas do caso começaram a ser caçadas. Em julho de 2009, Leonardo Baring Rodrigues foi assassinado na Vila do Céu, em Cosmos. O irmão dele, Leandro, foi escoltado e com colete à prova de balas ao enterro. Mas, no ano seguinte, Leandro também acabou sendo morto – os irmãos foram os primeiros a identificar na ação os integrantes da milícia.
Em seguida, o pai de Leonardo e Leandro, o ex-pracinha da Segunda Guerra Vicente Rodrigues, de 89 anos, foi levado para um estaleiro desativado e executado pelo bando. Também foram fuzilados a mulher e o cunhado de Vicente, Maria José e Carlos Alberto Cardoso.
Interesses. Carminha, hoje com 35 anos, diz que os processos envolvendo a família são "claramente políticos". Ela se defende com uma pergunta: "Alguém conquista apoio de uma comunidade fazendo isso (massacre)?"
Ela afirma que o ex-delegado federal Júlio Brasil, já falecido, que concorreu em 2008 a vereador, tinha interesse em "ajudar" a Polícia Civil. Brasil não foi eleito. "Moro há 35 anos em Campo Grande, nasci aqui, minha família é daqui. Meu tio ia jogar bomba na delegacia do próprio bairro?", pergunta ela, referindo-se à denúncia de que Natalino Guimarães teria sido autor de um atentado contra a 35.ª DP, que investigava a atuação das milícias.
No ano passado, Carminha denunciou outro grupo de milícia que atua em Campo Grande por prejudicar sua campanha à reeleição. Chegou a ser jurada de morte. Dentista, mãe de dois filhos, ela diz que não anda com seguranças. "Não posso parar a minha vida."
Poder paralelo. O delegado Marcus Neves, de 49 anos e há 25 na Polícia Civil, atuou no combate a um poder paralelo que se formava com as milícias na zona oeste do Rio. À frente da 35.ª DP, ele atuou na prisão de 143 pessoas ligadas a milícias, entre elas cinco políticos – Jerominho, Natalino e Carminha, o ex-bombeiro e ex-vereador Cristiano Girão e o ex-vereador Luiz Fernando da Silva, o Deco.
Um dos momentos mais delicados da carreira do delegado foi a prisão de Natalino Guimarães, em pleno exercício do cargo de deputado estadual, em 2006. Ele rebate a versão de que a polícia agiu com interesses políticos. "Sou agente administrativo, do Estado. Não fico escolhendo o alvo. Faço o que devo fazer."
Ele lembra que a milícia começou a migrar para a política no começo da década passada. "Antes, eles só tinham interesse econômico. Quando começaram a ser procurados por candidatos, eles perceberam que era mais vantajoso para suas atividades criminosas se tivessem representantes próprios na Câmara de Vereadores, na Assembleia Legislativa e no Congresso", afirma. "A mecânica era assim: eles arrecadavam dinheiro para fazer caixa de campanha e financiar candidatos em nome da milícia", conta.
O delegado diz que a milícia é pior que o tráfico. "É porque tem sustentáculos na política, na máquina do Estado e na estrutura da segurança pública. O tráfico, com raras exceções, não tem essa mesma ligação."
Neves diz que o poder da "Liga da Justiça" entrou em declínio com a prisão dos nomes políticos da organização. "As principais cabeças da milícia foram presas. O tentáculo político não existe mais."
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