04 de outubro de 2013 | 2h 04
Antonio Paim* - O Estado de S.Paulo
O anúncio oficial do registro, pelo Tribunal Superior Eleitoral, do 32.º partido político acendeu a luz vermelha. Examinando friamente essa reação, cumpre proclamar que o espanto parece tardio e deslocado. Deveria ter ocorrido quando passaram a representar-se na Câmara dos Deputados mais de 20 agremiações.
A impressão que se recolhe é a de que se perdeu de vista qual seria mesmo a função do processo eleitoral. No fundo, embora pelo que teria de mais expressivo haja feito as pazes com a democracia, nossa esquerda, anos a fio, martelou na cabeça das pessoas que a eleição "era para conscientizar". Isto é, para difundir a ideia de que a solução das nossas mazelas exigia uma intervenção mais profunda, que certamente não viria por meio de eleições. Algo dessa pregação deve ter sobrevivido, talvez pelo fato de que nosso sistema educacional só se ocupa de formação profissional, ignorando a atribuição constitucional de que lhe cumpre igualmente educar para o exercício da cidadania.
O certo é que se perdeu de vista que as eleições se dão, primeiro, para que as correntes de opinião existentes se apresentem à luz do dia; segundo, de uma forma que diga logo qual a sua magnitude, se de fato tem alguma expressão no conjunto; terceiro, e mais importante, que assegure à que for mais expressiva condições plenas para governar. Na República brasileira, ainda que o Parlamento tenha perdido os poderes de que dispunha no sistema anterior, algo parece ter sobrado. É mais um órgão de sanção do que outra coisa. Tem até de engolir goela abaixo o Orçamento da União, função precípua de Poder Legislativo que se preze. Ainda assim, pode atrapalhar e infernizar (mesmo que transitoriamente) a vida do Executivo.
A julgar pelo grau de desprestígio a que chegou a nossa classe política, pouca gente acredita que haja uma solução à vista. Contudo não se pode negar que tanto a Câmara como o Senado abrigam pessoas sérias e competentes. Na minha modesta opinião, apenas perderam de vista que a construção e o subsequente aperfeiçoamento das instituições de governo democrático representativo corresponde a uma obra complexa. E mais: não é dada a todos. As nações que conseguiram tal feito são minoria.
Quer isso dizer que é preciso conhecer a experiência dos países que são efetivamente democracias consolidadas, ou melhor, que passaram a prova da História, situadas basicamente na Europa Ocidental e no mundo anglo-saxão. As personalidades que constituíram a nossa primeira experiência de governo representativo, no século 19, tinham presente tal circunstância. O visconde de Uruguai, Paulino José Soares de Sousa (1807-1866), principal teórico daquelas instituições, formulou com clareza essa diretriz, explicitando que para copiar devíamos conhecer de forma adequada o seu funcionamento e, também, "não copiá-las servilmente", mas tendo presentes possíveis óbices.
São emblemáticos os exemplos de que nossa liderança política age de forma inteiramente contrária a essa regra. O mais escandaloso, e muito a propósito do atual debate em matéria de proliferação partidária, é o que ocorreu com a introdução entre nós da cláusula de barreira, justamente o princípio que eliminou o defeito apresentado pelo sistema proporcional, a saber, a multiplicação de partidos, dificultando a governabilidade.
Nossa preocupação se cifrou em arranjar uma denominação "mais suave". Batizamo-la de cláusula de desempenho. Mas, em vez de examinar pormenorizadamente seu enunciado, nós o copiamos pela metade. Na parte inicial de seu enunciado se diz que a agremiação que não obtiver determinado porcentual dos votos perde o direito de se fazer representar. Mas segue-se esta ressalva: não sendo computados os votos que lhe hajam sido atribuídos para efeito do coeficiente eleitoral.
Como a nossa lei ignorou a ressalva, resultou que foram diplomados dois tipos de deputados, com e sem partido, levando o Supremo Tribunal Federal a considerar tal legislação como inconstitucional. Qual deveria ter sido o comportamento dos líderes? Reconhecer o erro e corrigi-lo. Lamentavelmente, nada disso ocorreu.
Mas há outros exemplos de (desastrada) autossuficiência.
Na fase da abertura política na década de 1980 emergiu encantamento pelo sistema eleitoral misto, introduzido no pós-guerra pela Alemanha Ocidental. Mas, em vez de nos determos nas razões por que esse modelo ficou até então circunscrito a esse país, tratamos de encontrar um nome "original" e virou no Brasil "distrital misto". Chegou a figurar na Constituição de 1967 e, depois de muitas andanças, revelou-se irregulamentável. Seguiram-se e permanecem as idas e voltas em torno do sistema distrital. O mais estranho é que não se começou pela análise do que ocorreria com a atual representação dos Estados, ensejando a correção das brutais distorções existentes. E quando se trata da lista preordenada, no caso do sistema proporcional, não foi examinada a forma como se dá a confecção dessas listas. Qualquer compêndio de ciência política indica que a diferença entre distrital e proporcional é que, neste último, se vota numa lista. É o modelo adotado na maioria dos países da Europa Ocidental e mesmo por nossos vizinhos. O razoável teria sido deter-se nesse exame, levando em conta que a excentricidade brasileira não deu certo (passou a incomodar com o 32.º).
Pode-se perfeitamente concluir que há uma preferência por "inventar a roda". Talvez mesmo esse não seja um cacoete da liderança que se formou nesta fase de redemocratização, mas algo de inerente à República brasileira.
A conclusão não parece exagerada: nós agora estamos experimentando o quinto modelo de governo republicano. E pelas "inovações" que aparecem a cada dia, certamente não se trataria do último.
*Antonio Paim é presidente do Conselho Acadêmico do Instituto de Humanidades. Site: www.institutodehumanidades.com.br
Antonio Paim* - O Estado de S.Paulo
O anúncio oficial do registro, pelo Tribunal Superior Eleitoral, do 32.º partido político acendeu a luz vermelha. Examinando friamente essa reação, cumpre proclamar que o espanto parece tardio e deslocado. Deveria ter ocorrido quando passaram a representar-se na Câmara dos Deputados mais de 20 agremiações.
A impressão que se recolhe é a de que se perdeu de vista qual seria mesmo a função do processo eleitoral. No fundo, embora pelo que teria de mais expressivo haja feito as pazes com a democracia, nossa esquerda, anos a fio, martelou na cabeça das pessoas que a eleição "era para conscientizar". Isto é, para difundir a ideia de que a solução das nossas mazelas exigia uma intervenção mais profunda, que certamente não viria por meio de eleições. Algo dessa pregação deve ter sobrevivido, talvez pelo fato de que nosso sistema educacional só se ocupa de formação profissional, ignorando a atribuição constitucional de que lhe cumpre igualmente educar para o exercício da cidadania.
O certo é que se perdeu de vista que as eleições se dão, primeiro, para que as correntes de opinião existentes se apresentem à luz do dia; segundo, de uma forma que diga logo qual a sua magnitude, se de fato tem alguma expressão no conjunto; terceiro, e mais importante, que assegure à que for mais expressiva condições plenas para governar. Na República brasileira, ainda que o Parlamento tenha perdido os poderes de que dispunha no sistema anterior, algo parece ter sobrado. É mais um órgão de sanção do que outra coisa. Tem até de engolir goela abaixo o Orçamento da União, função precípua de Poder Legislativo que se preze. Ainda assim, pode atrapalhar e infernizar (mesmo que transitoriamente) a vida do Executivo.
A julgar pelo grau de desprestígio a que chegou a nossa classe política, pouca gente acredita que haja uma solução à vista. Contudo não se pode negar que tanto a Câmara como o Senado abrigam pessoas sérias e competentes. Na minha modesta opinião, apenas perderam de vista que a construção e o subsequente aperfeiçoamento das instituições de governo democrático representativo corresponde a uma obra complexa. E mais: não é dada a todos. As nações que conseguiram tal feito são minoria.
Quer isso dizer que é preciso conhecer a experiência dos países que são efetivamente democracias consolidadas, ou melhor, que passaram a prova da História, situadas basicamente na Europa Ocidental e no mundo anglo-saxão. As personalidades que constituíram a nossa primeira experiência de governo representativo, no século 19, tinham presente tal circunstância. O visconde de Uruguai, Paulino José Soares de Sousa (1807-1866), principal teórico daquelas instituições, formulou com clareza essa diretriz, explicitando que para copiar devíamos conhecer de forma adequada o seu funcionamento e, também, "não copiá-las servilmente", mas tendo presentes possíveis óbices.
São emblemáticos os exemplos de que nossa liderança política age de forma inteiramente contrária a essa regra. O mais escandaloso, e muito a propósito do atual debate em matéria de proliferação partidária, é o que ocorreu com a introdução entre nós da cláusula de barreira, justamente o princípio que eliminou o defeito apresentado pelo sistema proporcional, a saber, a multiplicação de partidos, dificultando a governabilidade.
Nossa preocupação se cifrou em arranjar uma denominação "mais suave". Batizamo-la de cláusula de desempenho. Mas, em vez de examinar pormenorizadamente seu enunciado, nós o copiamos pela metade. Na parte inicial de seu enunciado se diz que a agremiação que não obtiver determinado porcentual dos votos perde o direito de se fazer representar. Mas segue-se esta ressalva: não sendo computados os votos que lhe hajam sido atribuídos para efeito do coeficiente eleitoral.
Como a nossa lei ignorou a ressalva, resultou que foram diplomados dois tipos de deputados, com e sem partido, levando o Supremo Tribunal Federal a considerar tal legislação como inconstitucional. Qual deveria ter sido o comportamento dos líderes? Reconhecer o erro e corrigi-lo. Lamentavelmente, nada disso ocorreu.
Mas há outros exemplos de (desastrada) autossuficiência.
Na fase da abertura política na década de 1980 emergiu encantamento pelo sistema eleitoral misto, introduzido no pós-guerra pela Alemanha Ocidental. Mas, em vez de nos determos nas razões por que esse modelo ficou até então circunscrito a esse país, tratamos de encontrar um nome "original" e virou no Brasil "distrital misto". Chegou a figurar na Constituição de 1967 e, depois de muitas andanças, revelou-se irregulamentável. Seguiram-se e permanecem as idas e voltas em torno do sistema distrital. O mais estranho é que não se começou pela análise do que ocorreria com a atual representação dos Estados, ensejando a correção das brutais distorções existentes. E quando se trata da lista preordenada, no caso do sistema proporcional, não foi examinada a forma como se dá a confecção dessas listas. Qualquer compêndio de ciência política indica que a diferença entre distrital e proporcional é que, neste último, se vota numa lista. É o modelo adotado na maioria dos países da Europa Ocidental e mesmo por nossos vizinhos. O razoável teria sido deter-se nesse exame, levando em conta que a excentricidade brasileira não deu certo (passou a incomodar com o 32.º).
Pode-se perfeitamente concluir que há uma preferência por "inventar a roda". Talvez mesmo esse não seja um cacoete da liderança que se formou nesta fase de redemocratização, mas algo de inerente à República brasileira.
A conclusão não parece exagerada: nós agora estamos experimentando o quinto modelo de governo republicano. E pelas "inovações" que aparecem a cada dia, certamente não se trataria do último.
*Antonio Paim é presidente do Conselho Acadêmico do Instituto de Humanidades. Site: www.institutodehumanidades.com.br
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