JULIANA BUBLITZ
ENTREVISTA: MIGUEL REALE JÚNIOR, um homem das leis
Em Canela, ele é apenas Miguel. Faz compras no supermercado, vai à fruteira, curte a vida no Interior como se nunca tivesse saído de lá, sem cerimônias. Miguel, na verdade, é Miguel Reale Júnior, um homem das leis, das letras e da urbe, nascido e criado em São Paulo. Um dos mais renomados juristas brasileiros. Desde 1995, quando se casou com a advogada gaúcha Judith Martins Costa, 61 anos, vive na ponte aérea. Divide-se entre o refúgio na Serra, rodeado de araucárias, e a agitação da capital paulista, onde mantém um escritório e dá aulas. Dos seus 69 anos, 44 são dedicados à Universidade de São Paulo (USP). É professor titular e chefe do Departamento de Direito Penal da instituição. Tem 18 livros publicados. Nos anos 80, atuou na campanha pelas Diretas Já e foi assessor de Ulysses Guimarães na Assembleia Constituinte. Mais tarde, tornou-se ministro da Justiça no governo Fernando Henrique. Hoje, acompanha a política de longe, com desânimo. Prefere ficar perto da família e trabalhar no silêncio de sua biblioteca particular, em Canela. Tem uma filha, duas enteadas, um neto de 18 anos e uma neta de cinco. Durante duas tardes, nos dias 12 e 16 de setembro, Miguel recebeu a equipe de ZH para uma conversa. Falou da paixão pelo Rio Grande do Sul, do julgamento do mensalão, da malfadada reforma política e das redes sociais. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Como começou a sua relação com o Rio Grande do Sul?
Começou quando eu passei a namorar a Judith Martins Costa, minha mulher, que é professora de Direito Civil. Quando casei com a Judith, em 1995, acabamos nos estabelecendo em Canela, onde construímos nossa casa e nosso local de trabalho. A partir daí, passei a ter uma ligação maior, inclusive com a Ordem dos Advogados do Rio Grande do Sul e com a Faculdade de Direito da UFRGS. Temos também uma propriedade rural em Cambará do Sul, na beira do cânion. O Rio Grande me encanta pela sua firmeza de caráter, pela sua gente, sua natureza.
Como é a sua rotina?
Vivo na ponte aérea. Às vezes, fico quatro, cinco dias aqui e vou para São Paulo, por conta do escritório e aulas. Mas não gosto muito de São Paulo.
Por que não?
São Paulo é uma cidade com várias oportunidades, com possibilidades imensas de fruição cultural, mas onde a incivilidade se sente mais presente. Essa tensão se verifica no elevador. As pessoas não se dizem bom dia. Entram no elevador de cara fechada. É uma cidade que tem uma agressividade presente no ar.
E o senhor escolheu Canela para construir o seu refúgio.
Sim. Em toda pequena cidade, especialmente no mundo rural, há um olhar para o outro, uma preocupação com o outro, uma confiança, mesmo nas relações econômicas. Também escolhi Canela pela beleza e proximidade.
O que o senhor costuma fazer quando está em Canela?
Trabalhar, estudar, elaborar pareceres, artigos. Consigo me dedicar muito mais ao trabalho aqui. Levo uma vida comum. Hoje mesmo (segunda-feira) saí para fazer compras no supermercado.
Nas horas de folga sai churrasco?
Não, não sai churrasco (risos). Tenho gosto por andar, caminhar e ir para Cambará, onde crio gado. É um divertimento. E gosto de acompanhar os jogos de futebol. Aqui, sou gremista. Em São Paulo, palmeirense. O bom é que fico informado sobre as séries A e B (risos, referindo-se ao fato de o Palmeiras estar na segunda divisão).
O senhor construiu uma casa inteirinha para acomodar a sua biblioteca. Pode falar um pouco sobre ela?
O acervo deve chegar a uns 15 mil livros. É uma biblioteca particular, à qual apenas amigos e familiares têm acesso. Conta com livros que compunham o meu próprio acervo, principalmente na área de Direito Penal, e livros que herdei do meu pai (Miguel Reale, morto em 2006, que dá nome ao salão principal da biblioteca). Há obras da família da Judith, que tem nove gerações de juristas, magistrados e grandes advogados.
Como foi a sua entrada na política?
Sempre tive interesse, e ele se concretizou na atuação junto aos órgãos de classe dos advogados. Fui presidente da Associação dos Advogados de São Paulo, em 1977, 1978, ainda moço. Foi uma época em que a associação assumiu a luta pela redemocratização e passou a promover uma série de atos de contestação. Só depois, a convite do Montoro (André Franco Montoro, que viria a ser governador de SP), do Ulysses Guimarães e do Mario Covas, é que entrei no MDB.
Qual o papel do ex-deputado Ulysses Guimarães na sua trajetória?
Ele ensinava a importância de se combinar coragem com prudência. Ou você tende a ser prudente demais ou corajoso demais. Lembro de uma vez, logo no início da Assembleia Constituinte, em que Ulysses promoveu um jantar na casa dele para os relatores das subcomissões. Esteve lá um senador do Rio Grande do Sul, o Bisol (José Paulo Bisol, secretário de Segurança do governo Olívio Dutra). Ulysses não o conhecia. Durante o jantar, Bisol provocou Ulysses de todas as formas, e Ulysses ficou quieto. Chegou uma hora que Bisol não se aguentou e falou: “Dr. Ulysses, o senhor é um perdulário da prudência!” Quando o pessoal saiu, Ulysses perguntou quem era aquele senador. Ele era assim, de uma paciência enorme, mas também de muita sagacidade.
O senhor se sente frustrado por não ter conseguido se eleger para a Assembleia Constituinte de 1988?
Não. Sabia que seria muito difícil. Já era um processo viciado, em que você precisava ter um curral eleitoral e muito dinheiro para manter cabos eleitorais. Estive várias vezes fazendo palestras em uma cidade e depois soube que um candidato passou por lá de helicóptero e despejou dinheiro. Esse mal persiste, porque o nosso sistema eleitoral é o mesmo que prevalecia em 1946 e que se manteve, mesmo com a Constituinte.
É uma das falhas da Constituição?
Sim. A Constituição teve vários pontos positivos, principalmente no campo dos direitos individuais, mas não conseguiu superar isso. Na época, o Sarney cismou que queria ficar cinco anos no poder e saiu para o tudo ou nada. O problema é que a Constituinte já havia votado sobre o Poder Legislativo e optado pelo parlamentarismo. Aí, surgiu o Centrão, um grupo de resistência conservadora que apresentou a emenda presidencialista. Teve início uma cooptação ilegal da vontade dos constituintes, que considero o primeiro mensalão, com a distribuição de canais de rádio e de TV para quem votasse a favor do presidencialismo e dos cinco anos para Sarney. Dito e feito. Vota-se o presidencialismo e tem de se fazer um trabalho de adaptação que resultou em um monstrengo.
Ficou uma espécie de presidencialismo às avessas?
Ficou um presidencialismo que não criou mecanismos de responsabilização dos partidos, dos deputados. A Câmara faz o que bem entende. E qual é a consequência para ela? Nenhuma. Se ela quiser chantagear o presidente da República, ela chantageia. E aí surgem o mensalão, as emendas parlamentares. A única saída era a revisão constitucional, que não saiu em função de um acordo por omissão. Aí está a origem da crise política brasileira. É por isso que se fala tanto de reforma política. A origem está nos cinco anos do Sarney. Se há alguém responsável pela crise política brasileira, essa pessoa chama-se José Sarney.
Não há benefícios no presidencialismo de coalizão?
Esse é um presidencialismo em que se parte do princípio de que há 300 picaretas no Congresso e se tenta cooptar a vontade desse imenso plenário de anônimos que querem se reeleger, que viram office-boys de luxo. Ele é fruto dessa mixórdia que foi feita na Constituinte. Se você for olhar a Constituição de 1946, a estrutura política brasileira é a mesma, e sempre foi geradora de crises. O que é o mensalão senão a tentativa de controle do Legislativo por vias escusas? Por quê? Porque não se consegue montar uma maioria. O próprio Fernando Henrique Cardoso teve de fazer uma divisão de poder que, de certa forma, desestruturou o governo, porque os ministérios eram entregues aos partidos.
O senhor participou desse processo. Qual é o seu sentimento hoje?
De profundo desânimo. Foi se estabelecendo na sociedade brasileira o valor da esperteza. E a nossa classe política reflete a mentalidade da sociedade. Nós todos acreditávamos muito no processo democrático. Imaginávamos que, mudando do regime militar para o regime democrático, se operaria quase que milagrosamente um processo de dedetização da sociedade e da política. E o que acabou acontecendo foi o inverso.
Qual é a sua opinião sobre o julgamento do mensalão?
Minha convicção é de que não deveria haver novo julgamento, porque não se justifica uma revisão. É um pedido de reconsideração que não existe em nenhum tribunal. Contudo, está certo o ministro Celso de Mello ao afirmar que o fato de haver revisão não quer dizer que haverá absolvição de alguns crimes. José Dirceu foi condenado pelo crime de corrupção, que é o mais grave e não tem recurso cabível. O problema inafastável é que poderá restar à população a impressão de que o sistema jurídico existe para não funcionar. Isso vem a se somar à descrença na seriedade como um valor. Se o sistema foi feito para não punir, por que vou ser correto? Mas tem razão o ministro no sentido de que não cabe à Corte decidir pela pressão pública. Deve decidir sem se preocupar em atender às ruas, mas sabendo que existe uma voz das ruas, simplesmente porque ela existe. Se a Justiça não funciona para o leigo, sente-se também que o sistema penal está igualmente fracassado. E o que está se fazendo? Endurecendo as leis penais, como se isso resolvesse.
Como se muda, se não é pela lei?
Pelo comportamento. Das elites políticas, da imprensa, das redes sociais. As redes sociais poderiam ter um papel educador, mas não têm. Elas podem derrubar o Mubarak (ditador egípcio deposto por uma rebelião popular em 2011), mas não constroem um novo governo. Quando se derrotou o Mubarak, o que sobrou? Sobrou o que já existia, o movimento fundamentalista islamita. Quer dizer, as redes sociais são capazes de destruir, mas não de construir. Elas se transformaram em um espaço de elogio mútuo e ninguém mais vive as próprias coisas se não mostrar que está vivendo. É um novo tipo de cartesianismo. Compartilho, logo existo. Tenho de dizer ao outro que estou no restaurante bebendo um vinho. Tenho de fotografar e passar para meio mundo. Quantos namorados vão ao restaurante para ficar ao telefone? Você sai com a namorada para ter companhia ao falar com um terceiro.
O senhor está nas redes sociais?
Não.
Não tem interesse?
Não. A ideia é preservar a privacidade.
A redes sociais podem ser úteis?
Sim. Podem divulgar ideias, movimentos, mas são fragmentárias e variáveis. A cada momento, há um interesse diferente. Os interesses são imediatos, urgentes, e não se consolidam. Há uma horizontalização, e não um aprofundamento das questões.
As redes sociais estiveram muito vinculadas às manifestações de junho. Que efeito tiveram?
O efeito de mostrar que a sociedade existe, mas pouco foi construído em cima disso. E as manifestações tinham os mais variados motivos. Me recordo de uma placa que corria a Avenida Paulista inteira dizendo: “Vendo Escort 98, único dono”. Quer dizer, tinha de tudo. O que se construiu? O Mais Médicos? Era um projeto do governo que existia havia meses e que estava sendo gestado como objeto de campanha do ministro da Saúde (Alexandre Padilha) a governador de São Paulo. Como se 4 mil médicos fossem resolver a questão. O problema não é falta de médicos, é a falta de estrutura. Além do Mais Médicos, o que mais? Uma proposta de Constituinte que ia colocar o Brasil em um processo de insegurança total? Depois, desistiu-se da Constituinte, inventou-se o plebiscito, que morreu na praia.
E a reforma política?
Também morreu, acabou. Ficou em uma proposta que está caminhando para alterar os mandatos para cinco anos e unificar as eleições. Mas parou nisso. Até hoje, o presidente Fernando Henrique lamenta não ter priorizado a reforma política, e eu creio que é de se lamentar mesmo, porque ele tinha condições de fazer, mas ficou mais preocupado com a reforma econômica. O problema todo, agora, é saber em que medida a sociedade civil organizada pode ter força de conduzir um processo de mudança.
O governo FH aprovou a emenda da reeleição, que até hoje causa controvérsia por suspeita de compra de votos. Foi um erro?
Creio que foi um erro não ter aprovado a emenda na revisão constitucional, como seria natural. Mas, em suma, há muitas dúvidas sobre esse fato, e havia muitos interesses que não eram apenas do presidente da República. O que consta é que havia governadores de Estados do Norte que tinham muito mais interesse em patrocinar essa compra, mas não foi isso que mobilizou a maioria a votar pela reeleição. Pode ter tido esse vício, mas não foi o fator determinante.
Como é a sua relação com Fernando Henrique Cardoso?
Tenho uma relação de amizade grande com ele, apesar de termos tido um problema sério quando fui ministro da Justiça. O presidente acabou sendo levado por informações errôneas, e esse foi um momento difícil para mim. Sempre tive vontade de ser ministro da Justiça para levar adiante um projeto. Na hora em que vi que o projeto estava comprometido, não tive saída a não ser me demitir. Fui desautorizado quando decidi intervir no Espírito Santo com o objetivo de fazer uma grande luta contra o crime organizado. Mas nós nos reconciliamos, temos uma relação de respeito mútuo.
Quais são os resultados destes 10 anos do PT na Presidência?
Houve um grande aparelhamento do Estado. Uma ocupação dos espaços estatais por pessoas ligadas ao PT. O partido tomou conta das estatais. Há também essa herança do mensalão, que é uma marca. Houve o avanço e a organização do Bolsa Família, que, aliás, não é uma criação do governo Lula. Mas ainda falta organizar a saída do Bolsa Família. Nós não qualificamos as pessoas. Temos 80% de analfabetos funcionais na população.
O PMDB está nesse governo desde o início. Qual é o papel do partido nisso?
O PMDB acabou se deturpando ao longo do tempo. Acabou se tornando um partido de grande coerência: ele é sempre governo. Tem um dado curioso da história que pouca gente sabe. O dr. Ulysses ia sair do PMDB no dia seguinte ao da sua morte (Ulysses morreu em outubro de 1992, em uma queda de helicóptero). Ele me ligou na quinta-feira anterior ao acidente e disse: “Reale, estou indo para Angra dos Reis. Na terça, às 9h, tenho reunião com o presidente Itamar Franco. Depois da reunião, eu gostaria que você transmitisse ao Fernando Henrique e ao Covas que estou saindo do PMDB e que comigo sairão 60 deputados. Vamos formar, junto com o PSDB, um novo partido parlamentarista”. O PMDB já estava tão desfigurado que o próprio Ulysses ia sair. E ele simbolizava o partido. Morreu sem ter o desgosto de ver o PMDB no núcleo do escândalo dos anões do orçamento (em 1993).
O senhor mesmo saiu do PMDB antes disso, não?
Continuei com o Ulysses em sua saga presidencial e saí logo depois, quando tive uma reunião difícil com ele. Disse que não ficaria no partido do Orestes Quércia (ex-governador de São Paulo) e fui para o PSDB.
O senhor tem atuação partidária?
Continuo no PSDB, mas não tenho atuação.
Que análise o senhor faz do cenário eleitoral para 2014?
É difícil fazer uma projeção, porque temos uma crise econômica que se avizinha, temos a crise política, a força de um líder carismático como o Lula e uma ausência de candidatos carismáticos na oposição. Eduardo Campos tem uma presença maior do que Aécio Neves, mas é muito cedo para dizer alguma coisa. O problema todo é o que uma eleição como essa pode trazer de efetivo benefício para a sociedade?
O senhor está desacreditado da política?
Muito. As crises que vivemos não foram suficientes para moralizar a política, pelo contrário. O processo do mensalão pode gerar um descontentamento com a Justiça. Não é que o Supremo deva decidir em função da opinião pública, mas ele tem de avaliar o impacto de sua decisão.
O senhor fala do mensalão, mas os petistas falam do mensalão mineiro, envolvendo o PSDB.
O mensalão mineiro não tem nada a ver com mensalão porque não teve compra de deputados. Pode ter havido o mesmo processo de operação financeira para obtenção de meios para a campanha. E foi altamente prejudicial na medida em que o PSDB se encolheu e não atacou, nas campanhas, o mensalão petista. O PSDB muitas vezes caminha de salto alto.
Como é Reale Júnior sem filtro?
É um homem que gosta da vida rural, das amizades e da ironia. Tenho muito gosto pela conversação e pela falta de esprit sérieux, sabe? Não ser sério, ser um pouco irônico. Gosto de brincar, passar trotes nos amigos.
Sem redes sociais?
Sem redes sociais. (risos)
Em Canela, ele é apenas Miguel. Faz compras no supermercado, vai à fruteira, curte a vida no Interior como se nunca tivesse saído de lá, sem cerimônias. Miguel, na verdade, é Miguel Reale Júnior, um homem das leis, das letras e da urbe, nascido e criado em São Paulo. Um dos mais renomados juristas brasileiros. Desde 1995, quando se casou com a advogada gaúcha Judith Martins Costa, 61 anos, vive na ponte aérea. Divide-se entre o refúgio na Serra, rodeado de araucárias, e a agitação da capital paulista, onde mantém um escritório e dá aulas. Dos seus 69 anos, 44 são dedicados à Universidade de São Paulo (USP). É professor titular e chefe do Departamento de Direito Penal da instituição. Tem 18 livros publicados. Nos anos 80, atuou na campanha pelas Diretas Já e foi assessor de Ulysses Guimarães na Assembleia Constituinte. Mais tarde, tornou-se ministro da Justiça no governo Fernando Henrique. Hoje, acompanha a política de longe, com desânimo. Prefere ficar perto da família e trabalhar no silêncio de sua biblioteca particular, em Canela. Tem uma filha, duas enteadas, um neto de 18 anos e uma neta de cinco. Durante duas tardes, nos dias 12 e 16 de setembro, Miguel recebeu a equipe de ZH para uma conversa. Falou da paixão pelo Rio Grande do Sul, do julgamento do mensalão, da malfadada reforma política e das redes sociais. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Como começou a sua relação com o Rio Grande do Sul?
Começou quando eu passei a namorar a Judith Martins Costa, minha mulher, que é professora de Direito Civil. Quando casei com a Judith, em 1995, acabamos nos estabelecendo em Canela, onde construímos nossa casa e nosso local de trabalho. A partir daí, passei a ter uma ligação maior, inclusive com a Ordem dos Advogados do Rio Grande do Sul e com a Faculdade de Direito da UFRGS. Temos também uma propriedade rural em Cambará do Sul, na beira do cânion. O Rio Grande me encanta pela sua firmeza de caráter, pela sua gente, sua natureza.
Como é a sua rotina?
Vivo na ponte aérea. Às vezes, fico quatro, cinco dias aqui e vou para São Paulo, por conta do escritório e aulas. Mas não gosto muito de São Paulo.
Por que não?
São Paulo é uma cidade com várias oportunidades, com possibilidades imensas de fruição cultural, mas onde a incivilidade se sente mais presente. Essa tensão se verifica no elevador. As pessoas não se dizem bom dia. Entram no elevador de cara fechada. É uma cidade que tem uma agressividade presente no ar.
E o senhor escolheu Canela para construir o seu refúgio.
Sim. Em toda pequena cidade, especialmente no mundo rural, há um olhar para o outro, uma preocupação com o outro, uma confiança, mesmo nas relações econômicas. Também escolhi Canela pela beleza e proximidade.
O que o senhor costuma fazer quando está em Canela?
Trabalhar, estudar, elaborar pareceres, artigos. Consigo me dedicar muito mais ao trabalho aqui. Levo uma vida comum. Hoje mesmo (segunda-feira) saí para fazer compras no supermercado.
Nas horas de folga sai churrasco?
Não, não sai churrasco (risos). Tenho gosto por andar, caminhar e ir para Cambará, onde crio gado. É um divertimento. E gosto de acompanhar os jogos de futebol. Aqui, sou gremista. Em São Paulo, palmeirense. O bom é que fico informado sobre as séries A e B (risos, referindo-se ao fato de o Palmeiras estar na segunda divisão).
O senhor construiu uma casa inteirinha para acomodar a sua biblioteca. Pode falar um pouco sobre ela?
O acervo deve chegar a uns 15 mil livros. É uma biblioteca particular, à qual apenas amigos e familiares têm acesso. Conta com livros que compunham o meu próprio acervo, principalmente na área de Direito Penal, e livros que herdei do meu pai (Miguel Reale, morto em 2006, que dá nome ao salão principal da biblioteca). Há obras da família da Judith, que tem nove gerações de juristas, magistrados e grandes advogados.
Como foi a sua entrada na política?
Sempre tive interesse, e ele se concretizou na atuação junto aos órgãos de classe dos advogados. Fui presidente da Associação dos Advogados de São Paulo, em 1977, 1978, ainda moço. Foi uma época em que a associação assumiu a luta pela redemocratização e passou a promover uma série de atos de contestação. Só depois, a convite do Montoro (André Franco Montoro, que viria a ser governador de SP), do Ulysses Guimarães e do Mario Covas, é que entrei no MDB.
Qual o papel do ex-deputado Ulysses Guimarães na sua trajetória?
Ele ensinava a importância de se combinar coragem com prudência. Ou você tende a ser prudente demais ou corajoso demais. Lembro de uma vez, logo no início da Assembleia Constituinte, em que Ulysses promoveu um jantar na casa dele para os relatores das subcomissões. Esteve lá um senador do Rio Grande do Sul, o Bisol (José Paulo Bisol, secretário de Segurança do governo Olívio Dutra). Ulysses não o conhecia. Durante o jantar, Bisol provocou Ulysses de todas as formas, e Ulysses ficou quieto. Chegou uma hora que Bisol não se aguentou e falou: “Dr. Ulysses, o senhor é um perdulário da prudência!” Quando o pessoal saiu, Ulysses perguntou quem era aquele senador. Ele era assim, de uma paciência enorme, mas também de muita sagacidade.
O senhor se sente frustrado por não ter conseguido se eleger para a Assembleia Constituinte de 1988?
Não. Sabia que seria muito difícil. Já era um processo viciado, em que você precisava ter um curral eleitoral e muito dinheiro para manter cabos eleitorais. Estive várias vezes fazendo palestras em uma cidade e depois soube que um candidato passou por lá de helicóptero e despejou dinheiro. Esse mal persiste, porque o nosso sistema eleitoral é o mesmo que prevalecia em 1946 e que se manteve, mesmo com a Constituinte.
É uma das falhas da Constituição?
Sim. A Constituição teve vários pontos positivos, principalmente no campo dos direitos individuais, mas não conseguiu superar isso. Na época, o Sarney cismou que queria ficar cinco anos no poder e saiu para o tudo ou nada. O problema é que a Constituinte já havia votado sobre o Poder Legislativo e optado pelo parlamentarismo. Aí, surgiu o Centrão, um grupo de resistência conservadora que apresentou a emenda presidencialista. Teve início uma cooptação ilegal da vontade dos constituintes, que considero o primeiro mensalão, com a distribuição de canais de rádio e de TV para quem votasse a favor do presidencialismo e dos cinco anos para Sarney. Dito e feito. Vota-se o presidencialismo e tem de se fazer um trabalho de adaptação que resultou em um monstrengo.
Ficou uma espécie de presidencialismo às avessas?
Ficou um presidencialismo que não criou mecanismos de responsabilização dos partidos, dos deputados. A Câmara faz o que bem entende. E qual é a consequência para ela? Nenhuma. Se ela quiser chantagear o presidente da República, ela chantageia. E aí surgem o mensalão, as emendas parlamentares. A única saída era a revisão constitucional, que não saiu em função de um acordo por omissão. Aí está a origem da crise política brasileira. É por isso que se fala tanto de reforma política. A origem está nos cinco anos do Sarney. Se há alguém responsável pela crise política brasileira, essa pessoa chama-se José Sarney.
Não há benefícios no presidencialismo de coalizão?
Esse é um presidencialismo em que se parte do princípio de que há 300 picaretas no Congresso e se tenta cooptar a vontade desse imenso plenário de anônimos que querem se reeleger, que viram office-boys de luxo. Ele é fruto dessa mixórdia que foi feita na Constituinte. Se você for olhar a Constituição de 1946, a estrutura política brasileira é a mesma, e sempre foi geradora de crises. O que é o mensalão senão a tentativa de controle do Legislativo por vias escusas? Por quê? Porque não se consegue montar uma maioria. O próprio Fernando Henrique Cardoso teve de fazer uma divisão de poder que, de certa forma, desestruturou o governo, porque os ministérios eram entregues aos partidos.
O senhor participou desse processo. Qual é o seu sentimento hoje?
De profundo desânimo. Foi se estabelecendo na sociedade brasileira o valor da esperteza. E a nossa classe política reflete a mentalidade da sociedade. Nós todos acreditávamos muito no processo democrático. Imaginávamos que, mudando do regime militar para o regime democrático, se operaria quase que milagrosamente um processo de dedetização da sociedade e da política. E o que acabou acontecendo foi o inverso.
Qual é a sua opinião sobre o julgamento do mensalão?
Minha convicção é de que não deveria haver novo julgamento, porque não se justifica uma revisão. É um pedido de reconsideração que não existe em nenhum tribunal. Contudo, está certo o ministro Celso de Mello ao afirmar que o fato de haver revisão não quer dizer que haverá absolvição de alguns crimes. José Dirceu foi condenado pelo crime de corrupção, que é o mais grave e não tem recurso cabível. O problema inafastável é que poderá restar à população a impressão de que o sistema jurídico existe para não funcionar. Isso vem a se somar à descrença na seriedade como um valor. Se o sistema foi feito para não punir, por que vou ser correto? Mas tem razão o ministro no sentido de que não cabe à Corte decidir pela pressão pública. Deve decidir sem se preocupar em atender às ruas, mas sabendo que existe uma voz das ruas, simplesmente porque ela existe. Se a Justiça não funciona para o leigo, sente-se também que o sistema penal está igualmente fracassado. E o que está se fazendo? Endurecendo as leis penais, como se isso resolvesse.
Como se muda, se não é pela lei?
Pelo comportamento. Das elites políticas, da imprensa, das redes sociais. As redes sociais poderiam ter um papel educador, mas não têm. Elas podem derrubar o Mubarak (ditador egípcio deposto por uma rebelião popular em 2011), mas não constroem um novo governo. Quando se derrotou o Mubarak, o que sobrou? Sobrou o que já existia, o movimento fundamentalista islamita. Quer dizer, as redes sociais são capazes de destruir, mas não de construir. Elas se transformaram em um espaço de elogio mútuo e ninguém mais vive as próprias coisas se não mostrar que está vivendo. É um novo tipo de cartesianismo. Compartilho, logo existo. Tenho de dizer ao outro que estou no restaurante bebendo um vinho. Tenho de fotografar e passar para meio mundo. Quantos namorados vão ao restaurante para ficar ao telefone? Você sai com a namorada para ter companhia ao falar com um terceiro.
O senhor está nas redes sociais?
Não.
Não tem interesse?
Não. A ideia é preservar a privacidade.
A redes sociais podem ser úteis?
Sim. Podem divulgar ideias, movimentos, mas são fragmentárias e variáveis. A cada momento, há um interesse diferente. Os interesses são imediatos, urgentes, e não se consolidam. Há uma horizontalização, e não um aprofundamento das questões.
As redes sociais estiveram muito vinculadas às manifestações de junho. Que efeito tiveram?
O efeito de mostrar que a sociedade existe, mas pouco foi construído em cima disso. E as manifestações tinham os mais variados motivos. Me recordo de uma placa que corria a Avenida Paulista inteira dizendo: “Vendo Escort 98, único dono”. Quer dizer, tinha de tudo. O que se construiu? O Mais Médicos? Era um projeto do governo que existia havia meses e que estava sendo gestado como objeto de campanha do ministro da Saúde (Alexandre Padilha) a governador de São Paulo. Como se 4 mil médicos fossem resolver a questão. O problema não é falta de médicos, é a falta de estrutura. Além do Mais Médicos, o que mais? Uma proposta de Constituinte que ia colocar o Brasil em um processo de insegurança total? Depois, desistiu-se da Constituinte, inventou-se o plebiscito, que morreu na praia.
E a reforma política?
Também morreu, acabou. Ficou em uma proposta que está caminhando para alterar os mandatos para cinco anos e unificar as eleições. Mas parou nisso. Até hoje, o presidente Fernando Henrique lamenta não ter priorizado a reforma política, e eu creio que é de se lamentar mesmo, porque ele tinha condições de fazer, mas ficou mais preocupado com a reforma econômica. O problema todo, agora, é saber em que medida a sociedade civil organizada pode ter força de conduzir um processo de mudança.
O governo FH aprovou a emenda da reeleição, que até hoje causa controvérsia por suspeita de compra de votos. Foi um erro?
Creio que foi um erro não ter aprovado a emenda na revisão constitucional, como seria natural. Mas, em suma, há muitas dúvidas sobre esse fato, e havia muitos interesses que não eram apenas do presidente da República. O que consta é que havia governadores de Estados do Norte que tinham muito mais interesse em patrocinar essa compra, mas não foi isso que mobilizou a maioria a votar pela reeleição. Pode ter tido esse vício, mas não foi o fator determinante.
Como é a sua relação com Fernando Henrique Cardoso?
Tenho uma relação de amizade grande com ele, apesar de termos tido um problema sério quando fui ministro da Justiça. O presidente acabou sendo levado por informações errôneas, e esse foi um momento difícil para mim. Sempre tive vontade de ser ministro da Justiça para levar adiante um projeto. Na hora em que vi que o projeto estava comprometido, não tive saída a não ser me demitir. Fui desautorizado quando decidi intervir no Espírito Santo com o objetivo de fazer uma grande luta contra o crime organizado. Mas nós nos reconciliamos, temos uma relação de respeito mútuo.
Quais são os resultados destes 10 anos do PT na Presidência?
Houve um grande aparelhamento do Estado. Uma ocupação dos espaços estatais por pessoas ligadas ao PT. O partido tomou conta das estatais. Há também essa herança do mensalão, que é uma marca. Houve o avanço e a organização do Bolsa Família, que, aliás, não é uma criação do governo Lula. Mas ainda falta organizar a saída do Bolsa Família. Nós não qualificamos as pessoas. Temos 80% de analfabetos funcionais na população.
O PMDB está nesse governo desde o início. Qual é o papel do partido nisso?
O PMDB acabou se deturpando ao longo do tempo. Acabou se tornando um partido de grande coerência: ele é sempre governo. Tem um dado curioso da história que pouca gente sabe. O dr. Ulysses ia sair do PMDB no dia seguinte ao da sua morte (Ulysses morreu em outubro de 1992, em uma queda de helicóptero). Ele me ligou na quinta-feira anterior ao acidente e disse: “Reale, estou indo para Angra dos Reis. Na terça, às 9h, tenho reunião com o presidente Itamar Franco. Depois da reunião, eu gostaria que você transmitisse ao Fernando Henrique e ao Covas que estou saindo do PMDB e que comigo sairão 60 deputados. Vamos formar, junto com o PSDB, um novo partido parlamentarista”. O PMDB já estava tão desfigurado que o próprio Ulysses ia sair. E ele simbolizava o partido. Morreu sem ter o desgosto de ver o PMDB no núcleo do escândalo dos anões do orçamento (em 1993).
O senhor mesmo saiu do PMDB antes disso, não?
Continuei com o Ulysses em sua saga presidencial e saí logo depois, quando tive uma reunião difícil com ele. Disse que não ficaria no partido do Orestes Quércia (ex-governador de São Paulo) e fui para o PSDB.
O senhor tem atuação partidária?
Continuo no PSDB, mas não tenho atuação.
Que análise o senhor faz do cenário eleitoral para 2014?
É difícil fazer uma projeção, porque temos uma crise econômica que se avizinha, temos a crise política, a força de um líder carismático como o Lula e uma ausência de candidatos carismáticos na oposição. Eduardo Campos tem uma presença maior do que Aécio Neves, mas é muito cedo para dizer alguma coisa. O problema todo é o que uma eleição como essa pode trazer de efetivo benefício para a sociedade?
O senhor está desacreditado da política?
Muito. As crises que vivemos não foram suficientes para moralizar a política, pelo contrário. O processo do mensalão pode gerar um descontentamento com a Justiça. Não é que o Supremo deva decidir em função da opinião pública, mas ele tem de avaliar o impacto de sua decisão.
O senhor fala do mensalão, mas os petistas falam do mensalão mineiro, envolvendo o PSDB.
O mensalão mineiro não tem nada a ver com mensalão porque não teve compra de deputados. Pode ter havido o mesmo processo de operação financeira para obtenção de meios para a campanha. E foi altamente prejudicial na medida em que o PSDB se encolheu e não atacou, nas campanhas, o mensalão petista. O PSDB muitas vezes caminha de salto alto.
Como é Reale Júnior sem filtro?
É um homem que gosta da vida rural, das amizades e da ironia. Tenho muito gosto pela conversação e pela falta de esprit sérieux, sabe? Não ser sério, ser um pouco irônico. Gosto de brincar, passar trotes nos amigos.
Sem redes sociais?
Sem redes sociais. (risos)
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