Fernando Luis Schüler*
Os jornais da semana dão conta de que a presidente Dilma ficou furiosa com a insubordinação do embaixador e encarregado de negócios Eduardo Saboia, que retirou da Bolívia o senador Roger Pinto, refugiado há 454 dias na embaixada brasileira em La Paz. Ficou irritada com a quebra da hierarquia, essas coisas. De minha parte, como se diz na gíria do futebol, não vou pipocar: achei uma atitude de Saboia admirável. Isto não quer dizer que, estivesse eu metido naquela situação, teria feito o mesmo. Quem sabe encontrasse outra saída. Quem sabe me faltasse coragem para arriscar uma fuga daquelas.
Não foram poucos os riscos assumidos pelo encarregado Saboia. Era preciso passar por uma dúzia de postos de controle e no fim cruzar a fronteira. Uma viagem equivalente à de Porto Alegre ao Rio de Janeiro, em 22 horas. Sem paradas, sem dormir, utilizando fraldas geriátricas. Se alguma coisa desse errado, o destino da comitiva era incerto. Na melhor hipótese, ele passaria por irresponsável, projeto de Tony Mendez tropical. De qualquer modo, ele sabia que estava transformando sua bem-sucedida carreira diplomática em uma incógnita.
A operação foi um retumbante sucesso. Tão positiva, para todas as partes, que poderia gerar alguma suspeita. Menos para Saboia. Ele enfrentará uma sindicância no Itamaraty, e pode ser expulso da carreira. De certo modo, ele já foi julgado pelas autoridades brasileiras. O governo, em nenhum momento, admitiu avaliar sua decisão. A tônica é dizer que não lhe cabia decidir coisa nenhuma. Que aguardasse instruções. Não importa que a situação perdurasse por 454 ou por 908 dias.
O curioso é que, por esta lógica, o embaixador Souza Dantas, responsável pela retirada de centenas de pessoas perseguidas pelo nazismo, no início dos anos 40, não seria conhecido como é: um dos heróis da diplomacia brasileira. À época da grande guerra, ele foi processado no Itamaraty, por insubordinação e descumprimento de normas na concessão de vistos. O caso do embaixador Dantas é distinto, em muitos aspectos, do episódio de Saboia. Mas há evidentes pontos comuns. O maior deles: a decisão solitária, feita por razões de consciência, contra a hierarquia do momento. Um tipo de decisão que se comunica unicamente com a História. A passagem do tempo faz com que se apaguem as pequenas razões, antipatias políticas, vaidades ofendidas de quem comanda. O tempo parece dar razão ao gesto desprendido, feito em nome de valores humanos permanentes, que ainda serão reconhecidos quando as escaramuças políticas ou ideológicas da hora já não fizerem mais nenhum sentido.
Saboia é nosso pequeno anti-Eichmann. Convenhamos que seu problema era bem menor do que o do distinto burocrata alemão. Havia apenas aquele sujeito, abandonado em uma salinha da embaixada, em meio a uma querela diplomática – a não concessão de um salvo-conduto. Havia também o problema da empatia. A proximidade, o olho no olho, dia a dia, faz dessas coisas. Para os burocratas de Brasília, tratava-se de um assunto a mais na agenda, quem sabe até pitoresco. Assunto para a comissão não sei qual, ou para uma boa reunião, antes de uma partida de tênis. Para o encarregado, quem sabe ajudado pelo sentimento cristão, a coisa adquiriu outro significado. Ele reagiu à indiferença, a seu modo, e tomou para si a responsabilidade de julgar. É possível que tenha sido traído pelo próprio pensamento, calculado mal os riscos, ou enganado pelo teatro depressivo do senador. O ponto é: são riscos de quem toma para si uma decisão.
Ele agiu certo? Não pergunto se sua decisão foi acertada, mas se ele “acertou em tomar a decisão”. Diria que somos ambivalentes em relação a isto. Parecemos gostar dos tipos heroicos, que tomam para si a responsabilidade da justiça, que reagem à passividade dos burocratas e dos governos. Esta é a grande matéria-prima dos filmes de ação. Da animação Avatar aos filmes de realidade, Argo à frente, vibramos com os personagens, que a um dado momento dão um soco na mesa e passam a agir por conta própria. Na vida real, não obstante, não parecemos assim tão corajosos. Parecemos gostar de uma vidinha mais regrada.
Isto parece valer não só para os governos, mas para qualquer organização. Se não abrimos algum espaço à discricionariedade, oferecendo às pessoas a chance do risco, e não tolerarmos o erro, dificilmente haverá gente capaz, no futuro, de praticar grandes acertos. Nesta linha, receio que o Itamaraty cometa o equívoco de punir um funcionário que tomou para si uma decisão dura, em uma situação extrema. Se isto ocorrer, uma mensagem terá sido passada não apenas para os nossos diplomatas, mas para nossos servidores públicos: não importa o que acontecer, obedeçam.
Sinceramente, não creio que isto aconteça. Uma solução diplomática será encontrada. Uma punição leve, talvez, algum atraso na carreira de Saboia, que ao menos guardará para os netos uma grande história. Para os demais, uma boa lição. Minha intuição diz que, nos mesmíssimos salões em que tanto se ouviu falar, da presidenta, dos ministros, em obediência e hierarquia, haverá, no futuro, novos discursos, lembrando a atitude de Saboia, e celebrando a ousadia.
Os jornais da semana dão conta de que a presidente Dilma ficou furiosa com a insubordinação do embaixador e encarregado de negócios Eduardo Saboia, que retirou da Bolívia o senador Roger Pinto, refugiado há 454 dias na embaixada brasileira em La Paz. Ficou irritada com a quebra da hierarquia, essas coisas. De minha parte, como se diz na gíria do futebol, não vou pipocar: achei uma atitude de Saboia admirável. Isto não quer dizer que, estivesse eu metido naquela situação, teria feito o mesmo. Quem sabe encontrasse outra saída. Quem sabe me faltasse coragem para arriscar uma fuga daquelas.
Não foram poucos os riscos assumidos pelo encarregado Saboia. Era preciso passar por uma dúzia de postos de controle e no fim cruzar a fronteira. Uma viagem equivalente à de Porto Alegre ao Rio de Janeiro, em 22 horas. Sem paradas, sem dormir, utilizando fraldas geriátricas. Se alguma coisa desse errado, o destino da comitiva era incerto. Na melhor hipótese, ele passaria por irresponsável, projeto de Tony Mendez tropical. De qualquer modo, ele sabia que estava transformando sua bem-sucedida carreira diplomática em uma incógnita.
A operação foi um retumbante sucesso. Tão positiva, para todas as partes, que poderia gerar alguma suspeita. Menos para Saboia. Ele enfrentará uma sindicância no Itamaraty, e pode ser expulso da carreira. De certo modo, ele já foi julgado pelas autoridades brasileiras. O governo, em nenhum momento, admitiu avaliar sua decisão. A tônica é dizer que não lhe cabia decidir coisa nenhuma. Que aguardasse instruções. Não importa que a situação perdurasse por 454 ou por 908 dias.
O curioso é que, por esta lógica, o embaixador Souza Dantas, responsável pela retirada de centenas de pessoas perseguidas pelo nazismo, no início dos anos 40, não seria conhecido como é: um dos heróis da diplomacia brasileira. À época da grande guerra, ele foi processado no Itamaraty, por insubordinação e descumprimento de normas na concessão de vistos. O caso do embaixador Dantas é distinto, em muitos aspectos, do episódio de Saboia. Mas há evidentes pontos comuns. O maior deles: a decisão solitária, feita por razões de consciência, contra a hierarquia do momento. Um tipo de decisão que se comunica unicamente com a História. A passagem do tempo faz com que se apaguem as pequenas razões, antipatias políticas, vaidades ofendidas de quem comanda. O tempo parece dar razão ao gesto desprendido, feito em nome de valores humanos permanentes, que ainda serão reconhecidos quando as escaramuças políticas ou ideológicas da hora já não fizerem mais nenhum sentido.
Saboia é nosso pequeno anti-Eichmann. Convenhamos que seu problema era bem menor do que o do distinto burocrata alemão. Havia apenas aquele sujeito, abandonado em uma salinha da embaixada, em meio a uma querela diplomática – a não concessão de um salvo-conduto. Havia também o problema da empatia. A proximidade, o olho no olho, dia a dia, faz dessas coisas. Para os burocratas de Brasília, tratava-se de um assunto a mais na agenda, quem sabe até pitoresco. Assunto para a comissão não sei qual, ou para uma boa reunião, antes de uma partida de tênis. Para o encarregado, quem sabe ajudado pelo sentimento cristão, a coisa adquiriu outro significado. Ele reagiu à indiferença, a seu modo, e tomou para si a responsabilidade de julgar. É possível que tenha sido traído pelo próprio pensamento, calculado mal os riscos, ou enganado pelo teatro depressivo do senador. O ponto é: são riscos de quem toma para si uma decisão.
Ele agiu certo? Não pergunto se sua decisão foi acertada, mas se ele “acertou em tomar a decisão”. Diria que somos ambivalentes em relação a isto. Parecemos gostar dos tipos heroicos, que tomam para si a responsabilidade da justiça, que reagem à passividade dos burocratas e dos governos. Esta é a grande matéria-prima dos filmes de ação. Da animação Avatar aos filmes de realidade, Argo à frente, vibramos com os personagens, que a um dado momento dão um soco na mesa e passam a agir por conta própria. Na vida real, não obstante, não parecemos assim tão corajosos. Parecemos gostar de uma vidinha mais regrada.
Isto parece valer não só para os governos, mas para qualquer organização. Se não abrimos algum espaço à discricionariedade, oferecendo às pessoas a chance do risco, e não tolerarmos o erro, dificilmente haverá gente capaz, no futuro, de praticar grandes acertos. Nesta linha, receio que o Itamaraty cometa o equívoco de punir um funcionário que tomou para si uma decisão dura, em uma situação extrema. Se isto ocorrer, uma mensagem terá sido passada não apenas para os nossos diplomatas, mas para nossos servidores públicos: não importa o que acontecer, obedeçam.
Sinceramente, não creio que isto aconteça. Uma solução diplomática será encontrada. Uma punição leve, talvez, algum atraso na carreira de Saboia, que ao menos guardará para os netos uma grande história. Para os demais, uma boa lição. Minha intuição diz que, nos mesmíssimos salões em que tanto se ouviu falar, da presidenta, dos ministros, em obediência e hierarquia, haverá, no futuro, novos discursos, lembrando a atitude de Saboia, e celebrando a ousadia.
*DOUTOR EM FILOSOFIA PELA UFRGS
Nenhum comentário:
Postar um comentário