Após o trauma da boate Kiss, pouca ação. De 25 propostas apresentadas no Congresso depois da tragédia, nenhuma foi aprovada
FLÁVIO ILHA
O GLOBO
Publicado: 26/01/14 - 8h00
Kellen Ferreira, no corpo as marcas da tragédia Juliano Mendes
SANTA MARIA (RS) — Traumatizado com as mortes de 242 mortes na boate Kiss, a maioria jovens em busca de diversão, o país cobrou de suas autoridades no início do ano passado mais rigor na fiscalização em casas noturnas e outros locais de aglomeração. Da noite para o dia, blitzes em série foram realizadas em boates, casas de show e de festas, para dar à opinião pública a sensação de que tragédias como a de Santa Maria (RS) não se repetiriam. No Congresso, parlamentares também foram pródigos em apresentar projetos prevendo normas rígidas e punições severas para empresários que descuidassem da segurança e só se preocupassem com o lucro.
No entanto, das 25 propostas apresentadas — 20 na Câmara e cinco no Senado — nenhuma ainda foi aprovada. E em prefeituras de capitais, como São Paulo, Curitiba e Cuiabá, a falta de pessoal, diante do desafio de uma fiscalização ampla e permanente, persiste. Na capital paulista, por exemplo, 24 fiscais deixaram a carreira desde janeiro de 2013, de um total de 550 agentes encarregados de fiscalizar também obras irregulares e o estado de conservação de calçadas. Para se ter um ideia, quando a carreira foi criada há 34 anos, a previsão era de um efetivo de 1.200 profissionais.
A partir de hoje, O GLOBO publicará, em suas editorias, uma série de reportagens que abordará o desafio que o Brasil ainda enfrenta para ter uma fiscalização eficiente que evite abusos e irregularidades em diferentes áreas.
Regras não faltam, segundo a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). O problema é transformá-las em leis e cumpri-las com rigor, diz o diretor técnico da entidade, Eugenio De Simone:
— A ABNT não tem o poder de dizer para você o que você deve fazer. Quem tem esse poder é o governo — afirma.
Mesmo quando essas normas passam a ter valor legal, o problema passa ser criar uma estrutura eficiente que não as torne letra morta, diz um especialista em segurança, o presidente do Conselho Nacional dos Corpos de Bombeiros Militares do Brasil, coronel Lioberto Ubirajara Caetano de Souza:
— Na Região Amazônica, 90% dos municípios são subsidiados pelo governo federal, não têm condição de contratar professores. Como vão contratar bombeiros municipais? — indaga o coronel, que cobra do governo federal uma ajuda mais direta a essas localidades.
Enquanto isso, Santa Maria, cujo drama comoveu o país, não se recuperou. Só no Centro de Acolhimento Psicossocial, mantido pela prefeitura, cerca de 250 pessoas continuam em atendimento terapêutico regular, sendo que 90 precisam usar antidepressivos como parte do tratamento. É nesse clima de consternação que a Associação das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria luta pela punição dos responsáveis e leis mais rigorosas que, ao menos, diminuam o risco de novas boates Kiss.
Em Santa Maria, fiscalização patina na falta de pessoal
Um ano depois, quase nada mudou. As mortes no incêndio da boate Kiss, que completa um ano amanhã, não foram suficientes para que a cidade ainda traumatizada se preparasse adequadamente para evitar novas tragédias. A única medida concreta do prefeito Cézar Schirmer (PMDB) foi a sanção de uma lei municipal que determina aos estabelecimentos de diversão noturna a instalação de dispositivo eletrônico para contagem de público. O novo artigo do Código de Posturas do município foi sancionado em 13 de janeiro. Mesmo assim, os empreendimentos só começarão a ser cobrados pelo equipamento a partir de maio.
A estrutura de fiscalização municipal não ganhou servidores. A procuradora do município, Anny Desconzi, alega que a prefeitura não tem condições de contratar funcionários devido ao rigor da Lei de Responsabilidade Fiscal. Mesmo que pudesse, a medida não seria necessária, diz:
— Não precisamos de mais gente para fiscalizar — sintetizou a procuradora.
Segundo Anny, a prefeitura optou por investir numa reforma administrativa. Toda a fiscalização, antes distribuída por vários órgãos, agora está concentrada na Secretaria de Desenvolvimento Urbano, o que teria melhorado o desempenho do órgão.
Nova lei sancionada em 2013
Na Câmara, os vereadores estranham que nenhum projeto do Executivo propondo mais rigor no licenciamento de atividades que reúnam público tenha dado entrada em 2013. Segundo o presidente da Câmara, Werner Rempel (PPL), também não há previsão de que algo seja sugerido por Schirmer este ano. Ele discorda da avaliação da procuradora sobre a número de fiscais:
— Já fui vice-prefeito na cidade e sei que há muitas limitações legais. Mas não adianta: se não aumentar a quantidade de fiscais nenhum plano de prevenção vai funcionar. Faltou iniciativa por parte da prefeitura para propor alguma solução mais radical — avaliou.
No âmbito estadual, uma lei que promete mais rigor nos licenciamentos de casas noturnas, sancionada em dezembro pelo governador Tarso Genro (PT), dá prazo de cinco anos para que os empreendedores se regularizem no Corpo de Bombeiros, desde que não tenham sofrido modificação estrutural nos últimos meses.
A lei 14.376 foi aprovada pela Assembleia Legislativa gaúcha no final de 2013 e sancionada a toque de caixa, exatamente quando se completavam 11 meses da tragédia. Porém, não está em vigor porque, além dos cinco anos de prazo para que os prédios se adaptem às determinações, as prefeituras terão 12 meses para adequar as legislações municipais.
A lei ainda precisa ser regulamentada pelo estado, com a fixação de penas e multas para os casos de descumprimento, o que deve demorar pelo menos mais seis meses. A expectativa é que a lei comece a produzir os primeiros resultados concretos apenas em um prazo mínimo de 18 meses.
— É um avanço em termos de legislação, sem dúvida, mas não contempla nem a metade do que gostaríamos que mudasse para evitar outras tragédias. Enquanto as boates e prefeituras não se adaptarem, pode ocorrer uma nova Kiss a qualquer momento — criticou o presidente da Associação das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, Adherbal Ferreira.
Exigência de brigadista
O projeto prevê que os planos de prevenção e combate a incêndios sejam renovados anualmente em casos de estabelecimentos de médio e grande risco. E obriga que eventos com mais de 200 pessoas tenham a presença de um brigadista de incêndio. Mas há inúmeras dificuldades para a aplicação da lei: uma é que todos os donos de casas noturnas e estabelecimentos que reúnam público sejam notificados sobre os prazos e orientações para o cumprimento das normas; sem isso, ninguém poderá ser punido.
O comandante do Corpo de Bombeiros do Rio Grande do Sul, Eviltom Pereira Diaz, sugere mudanças urgentes na lei para que ela seja mais eficiente a curto prazo. Ele quer que a regularização de itens como extintores de incêndio e sinalizações e saídas de emergência sejam exigidas já dos empreendimentos, sem o prazo de cinco anos. E teme que a corporação fique sobrecarregada com as atribuições de fiscalização da lei.
— Em Santa Maria, melhoramos o atendimento porque conseguimos mais do que dobrar o número de bombeiros para a área de prevenção, de 14 para 31. Mas em outras regiões do estado sofremos muito com a falta de efetivo e de equipamentos para fechar o cerco às empresas que estão fora das normas de segurança.
Kelen Ferreira, no corpo, marcas de uma tragédia
A estudante, de 20 anos, traz no corpo as marcas mais profundas da tragédia na Kiss: internada por 78 dias, 50 dos quais em coma numa UTI em Porto Alegre, a garota carrega cicatrizes profundas nos dois braços, que provocam coceira e a obrigam a usar protetor solar de duas em duas horas, a cada vez que sai de casa. Além disso, precisou colocar uma prótese na perna direita para compensar a perda provocada pela operação de resgate que salvou sua vida.
— A sandália que estava usando naquela noite trançou em alguma coisa e estrangulou meu tornozelo, enquanto me puxavam para fora. Como afetou a circulação, a saída foi amputar a perna do joelho para baixo. Acordei do coma muito diferente do que eu era antes de entrar na boate — lamenta a estudante, que ainda tem dificuldade para falar e ficou com a voz rouca devido à fumaça venenosa.
Kelen obteve auxílio-doença do INSS de um salário mínimo (R$ 724,00) que a ajuda com os tratamentos. Ela faz terapia ocupacional no Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM). Reaprende a andar na esteira e já realizou “dois ou três” enxertos de pele, como forma de amenizar as sequelas da tragédia. Mas sabe que não terá a vida plenamente de volta e, por isso, não quer se submeter a procedimentos estéticos e deixar de ser “a porta-voz mais contundente” do crime cometido em Santa Maria.
—Só vou sossegar no dia em que todos os responsáveis forem punidos – garante Kelen.
Marta Beuren, contra o trauma, a solidariedade
Marta, de 63 anos , achou um jeito diferente de superar a perda do filho caçula no incêndio da Kiss: passou a ajudar outras mães.
— Quando passou o torpor inicial, a fase da negação, percebi que eu era uma privilegiada porque ainda tinha três filhos em casa. Outros lares foram totalmente desestruturados, outras mães perderam tudo o que tinham — diz a dona de casa.
O auxílio se materializou em forma de cestas básicas. Como muitas mães perderam o sustento da casa na tragédia, passaram a encontrar dificuldades para resolver questões como comprar comida. Marta ajudou a criar, em junho , o grupo Mães de Janeiro, que recolhe alimentos para doação.
Mensalmente, são 25 cestas básicas distribuídas para mães que perderam os filhos ou os maridos na boate, e que não têm mais como se sustentar:
— Faço isso como uma homenagem ao meu filho. E também para mostrar a injustiça cometida contra as famílias das vítimas. O drama de todos é o mesmo, não importa a condição social de cada um.
Gelson Silva, coveiro precisou buscar ajuda
Responsável pelo setor operacional dos cemitérios de Santa Maria, Gelson Altemir Silva, de 49 anos, tem um pesadelo recorrente desde que participou dos sepultamentos de 200 das 242 vítimas do incêndio na boate Kiss: o de que está fazendo seu próprio enterro. Gelson estava de folga naquele domingo quando o telefone começou a tocar, às 7h. E não parou mais, até o dia seguinte.
— Primeiro, falaram em cem mortos, depois foi subindo: 120, 140, 200. Fizemos tudo muito rápido, para diminuir o sofrimento das famílias. Depois que acabou, desabei e não levantei mais. Não tem dia que não me lembre da quantidade de corpos pelo chão — diz o funcionário da prefeitura.
Ele passou dias e noites sem comer e dormir. Conta que muitas bobagens lhe passaram pela cabeça, até que em abril, dois meses após a tragédia, procurou ajuda psicológica.
Gelson ficou internado três dias devido à depressão e passou a tomar remédios e a se consultar com um psiquiatra:
— Todos os meus colegas de trabalho mudaram para pior depois da tragédia. Temos pavor de que aconteça de novo.
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