ZERO HORA 13/01/2014 | 06h09
Além da violência nas cadeias e nas ruas, estado governado pela família sofre com mortalidade infantil, pobreza extrema e analfabetismo
Clã Sarney batiza a escola da cidade de São José de Ribamar e mais de uma centena de locaisFoto: Juliana Bublitz / Agencia RBS
Juliana Bublitz, Enviada Especial
O Maranhão é outro país: um enclave dominado por uma oligarquia que se perpetua no poder há cinco décadas, cujo nome está impresso em toda parte. Decifrar esse território é percorrer vielas cravejadas de casebres, estradas cobertas de pó e áreas invadidas, com esgoto a céu aberto e um traficante em cada esquina. Esse outro Brasil, onde a miséria é a regra, ganhou as manchetes desde que uma onda de violência ultrapassou os muros do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís. O país assistiu a cenas de decapitação em celas superlotadas e, do lado de fora, viu ônibus serem incendiados. Um dos ataques resultou na morte de Ana Clara Santos Souza, seis anos.
O local do atentado, ironicamente, chama-se Vila Sarney Filho. Fica em São José de Ribamar, na Região Metropolitana, e é um retrato do Maranhão. A comunidade ainda tenta superar o trauma.
– Meu tio, pai da Ana Clara, está em choque. E o pior é que os bandidos que fizeram isso com a gente são conhecidos. Moram aqui – desabafa a prima Erica Castro, 19 anos.
A barbárie chamou a atenção de organismos internacionais, mas, para quem vive no Estado, não é novidade. Há anos, os moradores testemunham o que as estatísticas evidenciam. De 2000 a 2010, a taxa de homicídios no Estado cresceu 273%, segundo o economista Daniel Cerqueira, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Trata-se do segundo maior índice do Brasil, atrás da Bahia – o Rio Grande do Sul está em 11º lugar.
O colapso da segurança pública não vem sozinho. Está relacionado a outros números, igualmente negativos. São as marcas dos 48 anos de hegemonia política da família Sarney. Um reinado que começou em 1966, quando José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, então com 35 anos, assumiu pela primeira vez o governo estadual. Filho do desembargador Sarney Costa, que batiza o Fórum em São Luís (com direito a estátua e tudo), decidiu adotar o nome do pai no sobrenome. Funcionou. Político jovem, letrado, conhecido no meio intelectual, José Sarney – hoje senador pelo Amapá, aos 83 anos – apostou no discurso da modernização. Foi apoiado pelos militares, que queriam substituir antigos caciques.
– Sarney prometeu acabar com as oligarquias e usou o slogan “Maranhão Novo” na campanha. Foi beneficiado pela ditadura porque, além de não ter oposição, contava com os investimentos federais em obras faraônicas no Nordeste – diz o historiador Wagner Cabral da Costa.
O líder político se tornou um homem com influência no governo federal, característica que aprimorou ao longo dos anos, independentemente do partido do presidente eleito. E, ao mesmo tempo, formou uma rede de apoiadores nas prefeituras do Interior, que garantiam votos em troca de recursos. Assim surgiu o sarneysmo.
Deu tão certo que, desde 1966, o clã e seus aliados venceram quase todas as eleições para governador – exceto duas. Sarney percebeu a derrocada da ditadura, aproximou-se do MDB e, com a morte de Tancredo Neves, chegou à presidência da República. Durante todos esses anos, ergueu um império midiático no Nordeste, incluindo uma afiliada da TV Globo.
Agora, a herdeira de Sarney, Roseana, vive um inferno astral. Depois de dizer que “o Maranhão está mais violento porque está mais rico”, a governadora virou motivo de piada. O Estado lidera a pobreza extrema no país. Estima-se que 12,9% da população sobreviva com até R$ 70 por mês. Das 217 cidades maranhenses, 72,8% têm um Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) considerado baixo ou muito baixo, sem contar as altas taxas de mortalidade infantil.
– Enquanto a família Sarney come camarão e lagosta, o povo passa fome – resume o jornalista Gutemberg Bogea, 46 anos, do Jornal Pequeno, um dos poucos a fazer oposição.
Fundação é mantida com verbas públicas
O culto ao ex-presidente da República é tamanho deste lado do Brasil que um prédio datado de 1654, com 5,8 mil metros quadrados e conhecido como Convento das Mercês, acabou sendo transformado na Fundação José Sarney – um relicário em homenagem ao líder político.
Localizada nas redondezas do Centro Histórico, a entidade se tornou pública em 2011, em meio a críticas da oposição. Desde então, recebe verbas do Estado para se manter e é vinculada à Secretaria Estadual da Educação. Por conta disso, passou a se chamar Fundação da Memória Republicana Brasileira, mas, na prática, continua servindo para preservar a memória sobre Sarney.
No pátio, o Galaxie Landau preto usado durante o mandato presidencial, entre 1985 e 1990, está em exposição. Há também um busto do senador do tamanho de uma geladeira com os seguintes dizeres em bronze, seguidos de sua assinatura: “Maranhão: minha terra, minha paixão”.
No interior da edificação, cercada de palmeiras, dois salões concentram objetos pessoais de todos os tipos. Em um deles, as prateleiras abrigam livros, fotos e trajes oficiais, incluindo a vestimenta usada na cerimônia que deu a Sarney uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.
No outro espaço, mais amplo, estão em exibição os presentes recebidos nos tempos de chefe de Estado. São obras de arte de todas as partes do mundo. Há uma miniatura de samurai e espadas com ouro nos punhos. Até uma cuia e uma bomba, ofertadas por um ex-prefeito de Caxias do Sul, estão lá, junto de uma chaleira reluzente. Nada pode ser fotografado.
Em algum lugar fechado à visitação, existe uma sala que guarda quadros nos quais Sarney, seus parentes e aliados são retratados como santos. Acredita-se que sejam 30 pinturas. Até hoje, não se sabe exatamente tudo o que existe dentro do prédio. O promotor Paulo Avelar diz que há dúvidas em torno das prestações de contas e do acervo.
– Mandei fazer uma auditoria, porque, sem inventário, não há como saber o real patrimônio da fundação – afirma Avelar.
Enquanto isso, o antigo convento segue recebendo turistas e excursões escolares de segunda a sábado. A vida segue no Maranhão. Ou tenta.
Um sobrenome onipresente
As últimas notícias envolvendo Roseana Sarney irritam a população. Não pegou bem a tentativa de licitar a compra de toneladas de frutos do mar para as residências oficiais, enquanto São Luís ferve. Nada disso, no entanto, parece arranhar a blindagem em torno da oligarquia Sarney.
Além de ter parentes e amigos ocupando postos-chave no governo, o clã mantém pessoas próximas em órgãos estratégicos, de fiscalização. O caso mais conhecido é o da irmã do senador, Nelma Sarney, corregedora no Tribunal de Justiça. Fora isso, os Sarney estão em todos os lugares. Ou quase.
Centenas de locais levam o nome da dinastia. Na Vila Sarney Filho, na cidade de São José de Ribamar, perto de São Luís, há uma escola municipal com a mesma identificação. Na Capital, existe até a Maternidade Marly Sarney, mulher do senador. Há a Rua José Sarney, a Ponte José Sarney e a Unidade Integrada Roseana Sarney, outra escola, localizada junto à Vila Ilhinha, onde teria surgido o Bonde dos 40, facção ligada aos atentados. O prédio parece abandonado. Quando Zero Hora chegou ao local, na tarde de sábado, havia acabado de ser arrombado.
– E o pior é que ninguém faz nada – desabafa o segurança Jackson Douglas.
Além da violência nas cadeias e nas ruas, estado governado pela família sofre com mortalidade infantil, pobreza extrema e analfabetismo
Clã Sarney batiza a escola da cidade de São José de Ribamar e mais de uma centena de locaisFoto: Juliana Bublitz / Agencia RBS
Juliana Bublitz, Enviada Especial
O Maranhão é outro país: um enclave dominado por uma oligarquia que se perpetua no poder há cinco décadas, cujo nome está impresso em toda parte. Decifrar esse território é percorrer vielas cravejadas de casebres, estradas cobertas de pó e áreas invadidas, com esgoto a céu aberto e um traficante em cada esquina. Esse outro Brasil, onde a miséria é a regra, ganhou as manchetes desde que uma onda de violência ultrapassou os muros do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís. O país assistiu a cenas de decapitação em celas superlotadas e, do lado de fora, viu ônibus serem incendiados. Um dos ataques resultou na morte de Ana Clara Santos Souza, seis anos.
O local do atentado, ironicamente, chama-se Vila Sarney Filho. Fica em São José de Ribamar, na Região Metropolitana, e é um retrato do Maranhão. A comunidade ainda tenta superar o trauma.
– Meu tio, pai da Ana Clara, está em choque. E o pior é que os bandidos que fizeram isso com a gente são conhecidos. Moram aqui – desabafa a prima Erica Castro, 19 anos.
A barbárie chamou a atenção de organismos internacionais, mas, para quem vive no Estado, não é novidade. Há anos, os moradores testemunham o que as estatísticas evidenciam. De 2000 a 2010, a taxa de homicídios no Estado cresceu 273%, segundo o economista Daniel Cerqueira, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Trata-se do segundo maior índice do Brasil, atrás da Bahia – o Rio Grande do Sul está em 11º lugar.
O colapso da segurança pública não vem sozinho. Está relacionado a outros números, igualmente negativos. São as marcas dos 48 anos de hegemonia política da família Sarney. Um reinado que começou em 1966, quando José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, então com 35 anos, assumiu pela primeira vez o governo estadual. Filho do desembargador Sarney Costa, que batiza o Fórum em São Luís (com direito a estátua e tudo), decidiu adotar o nome do pai no sobrenome. Funcionou. Político jovem, letrado, conhecido no meio intelectual, José Sarney – hoje senador pelo Amapá, aos 83 anos – apostou no discurso da modernização. Foi apoiado pelos militares, que queriam substituir antigos caciques.
– Sarney prometeu acabar com as oligarquias e usou o slogan “Maranhão Novo” na campanha. Foi beneficiado pela ditadura porque, além de não ter oposição, contava com os investimentos federais em obras faraônicas no Nordeste – diz o historiador Wagner Cabral da Costa.
O líder político se tornou um homem com influência no governo federal, característica que aprimorou ao longo dos anos, independentemente do partido do presidente eleito. E, ao mesmo tempo, formou uma rede de apoiadores nas prefeituras do Interior, que garantiam votos em troca de recursos. Assim surgiu o sarneysmo.
Deu tão certo que, desde 1966, o clã e seus aliados venceram quase todas as eleições para governador – exceto duas. Sarney percebeu a derrocada da ditadura, aproximou-se do MDB e, com a morte de Tancredo Neves, chegou à presidência da República. Durante todos esses anos, ergueu um império midiático no Nordeste, incluindo uma afiliada da TV Globo.
Agora, a herdeira de Sarney, Roseana, vive um inferno astral. Depois de dizer que “o Maranhão está mais violento porque está mais rico”, a governadora virou motivo de piada. O Estado lidera a pobreza extrema no país. Estima-se que 12,9% da população sobreviva com até R$ 70 por mês. Das 217 cidades maranhenses, 72,8% têm um Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) considerado baixo ou muito baixo, sem contar as altas taxas de mortalidade infantil.
– Enquanto a família Sarney come camarão e lagosta, o povo passa fome – resume o jornalista Gutemberg Bogea, 46 anos, do Jornal Pequeno, um dos poucos a fazer oposição.
Fundação é mantida com verbas públicas
O culto ao ex-presidente da República é tamanho deste lado do Brasil que um prédio datado de 1654, com 5,8 mil metros quadrados e conhecido como Convento das Mercês, acabou sendo transformado na Fundação José Sarney – um relicário em homenagem ao líder político.
Localizada nas redondezas do Centro Histórico, a entidade se tornou pública em 2011, em meio a críticas da oposição. Desde então, recebe verbas do Estado para se manter e é vinculada à Secretaria Estadual da Educação. Por conta disso, passou a se chamar Fundação da Memória Republicana Brasileira, mas, na prática, continua servindo para preservar a memória sobre Sarney.
No pátio, o Galaxie Landau preto usado durante o mandato presidencial, entre 1985 e 1990, está em exposição. Há também um busto do senador do tamanho de uma geladeira com os seguintes dizeres em bronze, seguidos de sua assinatura: “Maranhão: minha terra, minha paixão”.
No interior da edificação, cercada de palmeiras, dois salões concentram objetos pessoais de todos os tipos. Em um deles, as prateleiras abrigam livros, fotos e trajes oficiais, incluindo a vestimenta usada na cerimônia que deu a Sarney uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.
No outro espaço, mais amplo, estão em exibição os presentes recebidos nos tempos de chefe de Estado. São obras de arte de todas as partes do mundo. Há uma miniatura de samurai e espadas com ouro nos punhos. Até uma cuia e uma bomba, ofertadas por um ex-prefeito de Caxias do Sul, estão lá, junto de uma chaleira reluzente. Nada pode ser fotografado.
Em algum lugar fechado à visitação, existe uma sala que guarda quadros nos quais Sarney, seus parentes e aliados são retratados como santos. Acredita-se que sejam 30 pinturas. Até hoje, não se sabe exatamente tudo o que existe dentro do prédio. O promotor Paulo Avelar diz que há dúvidas em torno das prestações de contas e do acervo.
– Mandei fazer uma auditoria, porque, sem inventário, não há como saber o real patrimônio da fundação – afirma Avelar.
Enquanto isso, o antigo convento segue recebendo turistas e excursões escolares de segunda a sábado. A vida segue no Maranhão. Ou tenta.
Um sobrenome onipresente
As últimas notícias envolvendo Roseana Sarney irritam a população. Não pegou bem a tentativa de licitar a compra de toneladas de frutos do mar para as residências oficiais, enquanto São Luís ferve. Nada disso, no entanto, parece arranhar a blindagem em torno da oligarquia Sarney.
Além de ter parentes e amigos ocupando postos-chave no governo, o clã mantém pessoas próximas em órgãos estratégicos, de fiscalização. O caso mais conhecido é o da irmã do senador, Nelma Sarney, corregedora no Tribunal de Justiça. Fora isso, os Sarney estão em todos os lugares. Ou quase.
Centenas de locais levam o nome da dinastia. Na Vila Sarney Filho, na cidade de São José de Ribamar, perto de São Luís, há uma escola municipal com a mesma identificação. Na Capital, existe até a Maternidade Marly Sarney, mulher do senador. Há a Rua José Sarney, a Ponte José Sarney e a Unidade Integrada Roseana Sarney, outra escola, localizada junto à Vila Ilhinha, onde teria surgido o Bonde dos 40, facção ligada aos atentados. O prédio parece abandonado. Quando Zero Hora chegou ao local, na tarde de sábado, havia acabado de ser arrombado.
– E o pior é que ninguém faz nada – desabafa o segurança Jackson Douglas.
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