ZH 21/09/2014 | 07h01
Relegados ao esquecimento, monumentos históricos de Porto Alegre somem ou são depredados
Às voltas com programa de restauração que promete recuperar peças roubadas ou danificadas ao longo dos anos, Porto Alegre tem histórico de cidade que não preserva estátuas, bustos e obras em vias e parques
por Itamar Melo
Na Redenção, esculturas, bustos e placas de metal com inscrições foram dilapidados, restando apenas as bases Foto: Reprodução/Bruno Alencastro / Agência RBS
A prefeitura de Porto Alegre está realizando no Parque Farroupilha uma modalidade peculiar de obra: o restauro de monumentos que não existem. Anunciado como "um presente" para a cidade pelo prefeito José Fortunati e propagandeado em diversos pontos da Redenção por meio de painéis enormes, o projeto consiste na recuperação de 12 peças, incluindo bustos, cabeças e placas de bronze. O detalhe é que já não há muito a recuperar. As obras originais foram roubadas.
Boa parte da rapina ocorreu entre o final de 2013 e o começo deste ano. Na falta das esculturas, relevos e placas com inscrições, o que os trabalhadores mais têm feito é renovar pedestais de pedra. A Secretaria Municipal da Cultura (SMC) promete, nos casos em que for possível, substituir peças furtadas por réplicas feitas com material sem valor comercial, como resina ou pedra.
A dilapidação é um retrato do que ocorre em diversos pontos da cidade. Nos últimos anos, monumentos da Capital foram depenados. Um patrimônio artístico e histórico único, formado ao longo de décadas, está perdido.
— Em tempos de paz, não existe outra cidade do mundo que tenha sofrido uma destruição da arte pública como a que Porto Alegre sofreu — lamenta o doutor em história da arte José Francisco Alves, que pesquisa o tema há décadas e é autor de livros como A Escultura Pública de Porto Alegre.
Alves questiona o uso do termo "restauro" para o que está sendo feito no Parque Farroupilha. Ele observa que restaurar significa tomar medidas para que o bem volte ao estado original:
— Não se pode falar em restauro ao limpar cepos de bustos que não existem mais. É uma atitude tão patética quanto o que restou, cepos de granito ou alvenaria que não dizem nada, com as homenagens e as placas roubadas. Pelo menos quatro dos 12 monumentos que a prefeitura incluiu na restauração estavam no parque até o ano passado e foram roubados recentemente.
Um exemplo são bustos de médicos localizados junto à Avenida João Pessoa. Em outubro, a Liga Homeopática do Rio Grande do Sul percebeu o sumiço da escultura em homenagem a um dos pioneiros da especialidade, Licínio Cardoso, inaugurada em 1952 (foto acima). Representantes da entidade procuraram a prefeitura, denunciaram o furto e pediram providências.
Pouco depois, constataram o roubo do busto do médico Annes Dias, de 1949. Voltaram a fazer alarde.No começo de janeiro, foi a vez do busto do fundador da homeopatia, Samuel Hahnemann, inaugurado em 1943, ser levado.
— A prefeitura foi lenta. A cidade está mergulhando em um esquecimento total e ninguém investiga para onde todas essas obras roubadas estão indo. A perda foi irreparável — alerta o responsável pelo departamento científico da Liga, Ben-Hur Dalla Porta.
Os homeopatas foram informados de que os bustos serão refeitos — não mais em bronze, e sim em resina. O historiador e arqueólogo Francisco Marshall, professor da UFRGS, faz objeções ao projeto da prefeitura no parque, uma parceria com o Sindicato da Construção Civil (Sinduscon/RS):
— O setor da prefeitura que cuida dos monumentos foi manipulado por uma ação de marketing. Isso não é politica de restauração. O que me preocupa é que o destino do que ainda existe em bronze na cidade é o roubo. O próximo passo será serrarem os monumentos.
Luiz Antônio Custódio, coordenador da memória cultural da SMC, afirma que o projeto na Redenção tem importância educativa. E justifica a iniciativa:
— Muitos desses monumentos têm vínculos afetivos para quem os produziu ou para quem os doou. Essas pessoas querem vê-los recuperados.
Estátuas foram de uma secretaria para outra
O busto do médico Annes Dias, de 1949, também foi roubado recentemente
Foto: Fernando Gomes/Reprodução
Algumas das peças que sumiram da Redenção não foram roubadas, mas retiradas pela Secretaria do Meio Ambiente (Smam) para prevenir furtos, afirma a prefeitura. A remoções ocorreram até 2011, abrangendo 11 placas de bronze, uma placa de granito, três bustos e uma máscara de leão em bronze. Smam e SMC não detalham quais peças foram recolhidas, mas acredita-se que entre elas possam estar os bustos de Luiz Englert, Assis Brasil e Padre Cacique. No caso dos monumentos que foram roubados, Custódio afirma que há chance de recuperação:
— Vamos buscar alternativas técnicas. Podem existir casos em que não há possibilidade, porque não existem vestígios. Logo, não serão feitas réplicas. Não podemos inventar arte. Mas quando houver base, vamos recuperar.
No começo deste ano, com a justificativa de deter a destruição da memória cultural de Porto Alegre, a prefeitura transferiu a responsabilidade pelos monumentos da cidade. A atribuição, que era da Smam, foi assumida pela a Secretaria Municipal da Cultura (SMC). Enquanto o bastão passava de uma pasta para outra, criminosos faziam uma limpa em praças e parques.
A promotora Ana Maria Marchesan, da Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente, não viu avanços e reforça que a SMC tem uma "estrutura mínima, até pior do que a da Smam".
— É uma inércia incrível. É tudo muito demorado — afirma.
Mesmo assim, Ana Maria não deposita toda a responsabilidade sobre a prefeitura:
— As coisas são muito radicais em Porto Alegre. A gente vê pelos movimentos sociais, que quando têm oportunidade destroem tudo. Há muitos grupos anarquistas, a quem debito grande parte das ações. É pesado debitar toda a conta no poder público. Nossa sociedade está muito degradada.
Responsável pelo setor de memória cultural da SMC, Luiz Antônio Custódio garante que houve avanços. Ele lista a publicação de uma nova diretriz para conservação do patrimônio e contratação de um inventário dos monumentos da cidade, que quando estiver pronto vai permitir estabelecer prioridades de recuperação.
— Além disso, começamos uma ação conjunta com Ministério Público, Brigada Militar, Guarda Municipal e governo estadual para verificar alternativas. Estamos não só conservando, mas montando um material didático escolar para que as crianças aprendam a importância dos monumentos, de forma a diminuir a sanha do vandalismo.
Cuidado com as peças deveria ser cotidiano
Segundo Custódio, o setor tem recursos, mas esses recursos não permitem fazer tudo. Ele também rebate a crítica de que a prefeitura é lenta demais para lidar com furtos e depredações.
— No serviço público ninguém faz o que quer, faz o que é possível. E o possível é o processo, que para qualquer coisa leva meses. E não é por burocracia, é a lei. As pessoas dizem: a prefeitura não fez. Mas e a sociedade, fez o quê? Sobra sempre para o poder público. Não há lugar que não tenha deterioração. Não é só aqui. É aqui e no mundo.
José Francisco Alves, que é professor de escultura do Atelier Livre da prefeitura e pesquisa a arte pública de Porto Alegre há décadas, não conhece lugar em que se repita a deterioração vista na capital gaúcha:
— Não comparo Porto Alegre com Paris ou Barcelona. Comparo com Rio, com Vitória, com Belém, com Florianópolis, com Curitiba, onde as obras estão iluminadas, limpas, bonitas. Se você vai a Salvador e olha o Monumento ao Dois de Julho, uma estrutura enorme de mármore, não tem um pingo de pichação. Enquanto isso, os nossos principais monumentos estão podres. É algo sem parâmetro no país e no mundo. Porto Alegre precisa ir a um psiquiatra.
Alves diz que a forma de combater a deterioração é fazer conservação e manutenção cotidiana — até porque restaurar depois sai caro. Ele considera um bom modelo o do Rio de Janeiro, que tem uma equipe exclusiva para cuidar dos monumentos. Em Porto Alegre, cita como bom exemplo a recente restauração do Chafariz do Menino com a Concha, na Redenção, que segue íntegro porque há um funcionário designado para mantê-lo limpo e em funcionamento.
Farrapos ao pé da letra
Estátua de Giuseppe e Anita Garibaldi é uma das mais valiosas do país
Foto: Fernando Gomes
Os líderes da Revolução Farroupilha nunca mereceram tanto a alcunha de farrapos como agora. Nos monumentos que os homenageiam em Porto Alegre, estão em condição miserável. Um forasteiro que visitar a estátua equestre de Bento Gonçalves vai ter dificuldade para acreditar que ele é o herói máximo dos festejos de nossa data maior, o 20 de Setembro.
O imponente monumento realizado pelo escultor Antônio Caringi e inaugurado em 1936 vive uma situação de envergonhar qualquer gaúcho. Além de estar totalmente pichado, em tintas das mais variadas cores, teve recentemente uma cantaria de 400 quilos arrancada do pedestal. Os bandidos quebraram a pedra para tentar arrancar a placa que ela emoldurava.Não conseguiram.
Quem também sai de mais uma Semana Farroupilha em estado vexatório é a estátua de Giuseppe e Anita Garibaldi, inaugurada em 1913. Feito na Itália em mármore de carrara pelo renomado artista Filadelfo Simi, que dedicou três anos ao trabalho, o monumento é considerado um dos mais valiosos do país em termos históricos e artísticos. Mas está abandonado.
Enegrecido de imundície, foi coberto de pichações. No pedestal estão colados há uma eternidade cartazes que ninguém se dá ao trabalho de retirar. A Secretaria Municipal de Cultura afirma que a recuperação do monumento a Giuseppe e Anita Garibaldi é prioridade e que o processo para que isso aconteça já foi finalizado — um ano atrás, quando ZH publicou uma reportagem relatando os mesmos problemas, uma recuperação já era anunciada. A estátua de Bento Gonçalves vai ter de esperar mais.
— Está na nossa lista de prioridades para o ano que vem — afirma o coordenador da memória cultural, Luiz Antônio Custódio.
Conheça algumas relíquias perdidas de uma cidade que não existe mais. Em livro, pesquisador aponta cerca de 400 monumentos históricos da cidade. Grande parte foi perdida ou furtada nos últimos 15 anos
Em 1911, o chafariz que homenageava o Guaíba e seus afluentes foi desmontado Foto: Bruno Alencastro / Agencia RBS
Em 2004, depois de anos de pesquisa, o professor José Francisco Alves publicou o livro A Escultura Pública de Porto Alegre, um inventário detalhado de cerca de 400 monumentos da cidade. Quando enviou a obra a Barcelona, os espanhóis não acreditaram que uma cidade tivesse nas ruas o patrimônio listado.
— Chamaram-no para dar cursos sobre o tema.
Passada uma década, o que o leitor encontra ao folhear o livro não é um inventário de patrimônio, é uma Porto Alegre que não existe mais. No volume, Alves já denunciava o processo de perda da arte pública, mas o problema se agravou de lá para cá.
— O que chama a atenção é que a cidade tinha não só grande quantidade, mas também variedade de obras.
Segundo o pesquisador, uma parte considerável dos monumentos e esculturas foi perdida nos últimos 15 anos, devido a ondas de furtos ocorridas em 1999, 2002, 2008 e na virada de 2013 para 2014 — quando até bustos pesados de bronze de artistas importantes como Antônio Caringi e Fernando Corona foram roubados. O problema não foi apenas o crime. Alves cita como exemplo uma escultura patrolada durante uma obra da prefeitura. Mas a história de perda do patrimônio é mais antiga.
1865-1866 - Chafarizes monumentais (Vários locais)
Foto: Reprodução
Entre 1865 e 1866, foram instalados em Porto Alegre sete chafarizes de ferro fundido monumentais encomendados da França pelo governo na província. O objetivo era que eles fornecessem água e adornassem a cidade. Dois deles, o da Praça da Alfândega e o da Praça do Portão, foram inaugurados pelo próprio imperador D. Pedro II. Os demais ficavam na Praça da Caridade (atual Dom Feliciano), na Praça da Harmonia (hoje Brigadeiro Sampaio), no potreiro da Várzea (campus central da UFRGS), no Alto da Bronze (Praça General Osório) e na Praça do Mercado (Praça XV). Seis desses chafarizes desapareceram entre 1900 e 1920. O único que sobreviveu foi o que ficava diante do Mercado Público, hoje instalado na Redenção e conhecido como Chafariz Imperial.
1866 - Chafariz de mármore do Guaíba e afluentes (Praça Dom Sebastião)
Foto: Reprodução
Ao lado do Colégio Rosário, está o que restou do monumento mais antigo da Capital. São os resquícios de um chafariz que homenageava o Guaíba e seus afluentes (Caí, Sinos Gravataí e Jacuí), na Praça da Matriz. Em 1911, a obra foi desmontada, e as estátuas, desmembradas e colocadas em um depósito. Em 1924, o jornal Correio do Povo revelou que as peças haviam sido vendidas a uma marmoraria para virar pó de mármore. Após a repercussão, foram recompradas pela prefeitura, com a promessa de instalação na Praça Montevidéu — o que não aconteceu.
Os restos do monumento — as estátuas representando os quatro afluentes, mas não o chafariz e a estátua do Guaíba — voltaram a ser vistos só em 1935, na Praça Dom Sebastião, mas separados. Alvo de roubos e pichações, foram removidas em 1983.Voltaram à praça três anos depois, reagrupadas. A prefeitura promete transferi-las em breve para a hidráulica do Moinhos de Vento.
1927 - Busto de Apolinário Porto Alegre (Praça Argentina)
Foto: Reprodução
De autoria de Alfred Adloff, era considerado um dos bustos mais belos do país. Mostrava o escritor com ar pensativo, segurando um livro, nas proximidades do local onde costumava deixar o carro. Foi roubado em 2003. Segundo José Francisco Alves, a Câmara Municipal e a prefeitura passaram quase dois anos discutindo a transferência do monumento sem saber que ele já havia sido levado.
1940 - Os marcos de Vargas (Avenida Farrapos)
Foto: Reprodução
Dez anos depois de deixar o Rio Grande do Sul para derrubar o governo, Getúlio Vargas voltou a Porto Alegre em 1940, na condição de ditador, para protagonizar um surto inauguratório. Uma série de marcos espalhados pela cidade dão testemunho da visita. O mais notável deles é o obelisco que marca a inauguração da Avenida Farrapos, localizado na Praça Pinheiro Machado. Vargas descerrou o monumento de granito, com quatro metros de altura. As placas que ornavam o obelisco sumiram.
Relegados ao esquecimento, monumentos históricos de Porto Alegre somem ou são depredados
Às voltas com programa de restauração que promete recuperar peças roubadas ou danificadas ao longo dos anos, Porto Alegre tem histórico de cidade que não preserva estátuas, bustos e obras em vias e parques
por Itamar Melo
Na Redenção, esculturas, bustos e placas de metal com inscrições foram dilapidados, restando apenas as bases Foto: Reprodução/Bruno Alencastro / Agência RBS
A prefeitura de Porto Alegre está realizando no Parque Farroupilha uma modalidade peculiar de obra: o restauro de monumentos que não existem. Anunciado como "um presente" para a cidade pelo prefeito José Fortunati e propagandeado em diversos pontos da Redenção por meio de painéis enormes, o projeto consiste na recuperação de 12 peças, incluindo bustos, cabeças e placas de bronze. O detalhe é que já não há muito a recuperar. As obras originais foram roubadas.
Boa parte da rapina ocorreu entre o final de 2013 e o começo deste ano. Na falta das esculturas, relevos e placas com inscrições, o que os trabalhadores mais têm feito é renovar pedestais de pedra. A Secretaria Municipal da Cultura (SMC) promete, nos casos em que for possível, substituir peças furtadas por réplicas feitas com material sem valor comercial, como resina ou pedra.
A dilapidação é um retrato do que ocorre em diversos pontos da cidade. Nos últimos anos, monumentos da Capital foram depenados. Um patrimônio artístico e histórico único, formado ao longo de décadas, está perdido.
— Em tempos de paz, não existe outra cidade do mundo que tenha sofrido uma destruição da arte pública como a que Porto Alegre sofreu — lamenta o doutor em história da arte José Francisco Alves, que pesquisa o tema há décadas e é autor de livros como A Escultura Pública de Porto Alegre.
Alves questiona o uso do termo "restauro" para o que está sendo feito no Parque Farroupilha. Ele observa que restaurar significa tomar medidas para que o bem volte ao estado original:
— Não se pode falar em restauro ao limpar cepos de bustos que não existem mais. É uma atitude tão patética quanto o que restou, cepos de granito ou alvenaria que não dizem nada, com as homenagens e as placas roubadas. Pelo menos quatro dos 12 monumentos que a prefeitura incluiu na restauração estavam no parque até o ano passado e foram roubados recentemente.
Um exemplo são bustos de médicos localizados junto à Avenida João Pessoa. Em outubro, a Liga Homeopática do Rio Grande do Sul percebeu o sumiço da escultura em homenagem a um dos pioneiros da especialidade, Licínio Cardoso, inaugurada em 1952 (foto acima). Representantes da entidade procuraram a prefeitura, denunciaram o furto e pediram providências.
Pouco depois, constataram o roubo do busto do médico Annes Dias, de 1949. Voltaram a fazer alarde.No começo de janeiro, foi a vez do busto do fundador da homeopatia, Samuel Hahnemann, inaugurado em 1943, ser levado.
— A prefeitura foi lenta. A cidade está mergulhando em um esquecimento total e ninguém investiga para onde todas essas obras roubadas estão indo. A perda foi irreparável — alerta o responsável pelo departamento científico da Liga, Ben-Hur Dalla Porta.
Os homeopatas foram informados de que os bustos serão refeitos — não mais em bronze, e sim em resina. O historiador e arqueólogo Francisco Marshall, professor da UFRGS, faz objeções ao projeto da prefeitura no parque, uma parceria com o Sindicato da Construção Civil (Sinduscon/RS):
— O setor da prefeitura que cuida dos monumentos foi manipulado por uma ação de marketing. Isso não é politica de restauração. O que me preocupa é que o destino do que ainda existe em bronze na cidade é o roubo. O próximo passo será serrarem os monumentos.
Luiz Antônio Custódio, coordenador da memória cultural da SMC, afirma que o projeto na Redenção tem importância educativa. E justifica a iniciativa:
— Muitos desses monumentos têm vínculos afetivos para quem os produziu ou para quem os doou. Essas pessoas querem vê-los recuperados.
Estátuas foram de uma secretaria para outra
O busto do médico Annes Dias, de 1949, também foi roubado recentemente
Foto: Fernando Gomes/Reprodução
Algumas das peças que sumiram da Redenção não foram roubadas, mas retiradas pela Secretaria do Meio Ambiente (Smam) para prevenir furtos, afirma a prefeitura. A remoções ocorreram até 2011, abrangendo 11 placas de bronze, uma placa de granito, três bustos e uma máscara de leão em bronze. Smam e SMC não detalham quais peças foram recolhidas, mas acredita-se que entre elas possam estar os bustos de Luiz Englert, Assis Brasil e Padre Cacique. No caso dos monumentos que foram roubados, Custódio afirma que há chance de recuperação:
— Vamos buscar alternativas técnicas. Podem existir casos em que não há possibilidade, porque não existem vestígios. Logo, não serão feitas réplicas. Não podemos inventar arte. Mas quando houver base, vamos recuperar.
No começo deste ano, com a justificativa de deter a destruição da memória cultural de Porto Alegre, a prefeitura transferiu a responsabilidade pelos monumentos da cidade. A atribuição, que era da Smam, foi assumida pela a Secretaria Municipal da Cultura (SMC). Enquanto o bastão passava de uma pasta para outra, criminosos faziam uma limpa em praças e parques.
A promotora Ana Maria Marchesan, da Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente, não viu avanços e reforça que a SMC tem uma "estrutura mínima, até pior do que a da Smam".
— É uma inércia incrível. É tudo muito demorado — afirma.
Mesmo assim, Ana Maria não deposita toda a responsabilidade sobre a prefeitura:
— As coisas são muito radicais em Porto Alegre. A gente vê pelos movimentos sociais, que quando têm oportunidade destroem tudo. Há muitos grupos anarquistas, a quem debito grande parte das ações. É pesado debitar toda a conta no poder público. Nossa sociedade está muito degradada.
Responsável pelo setor de memória cultural da SMC, Luiz Antônio Custódio garante que houve avanços. Ele lista a publicação de uma nova diretriz para conservação do patrimônio e contratação de um inventário dos monumentos da cidade, que quando estiver pronto vai permitir estabelecer prioridades de recuperação.
— Além disso, começamos uma ação conjunta com Ministério Público, Brigada Militar, Guarda Municipal e governo estadual para verificar alternativas. Estamos não só conservando, mas montando um material didático escolar para que as crianças aprendam a importância dos monumentos, de forma a diminuir a sanha do vandalismo.
Cuidado com as peças deveria ser cotidiano
Segundo Custódio, o setor tem recursos, mas esses recursos não permitem fazer tudo. Ele também rebate a crítica de que a prefeitura é lenta demais para lidar com furtos e depredações.
— No serviço público ninguém faz o que quer, faz o que é possível. E o possível é o processo, que para qualquer coisa leva meses. E não é por burocracia, é a lei. As pessoas dizem: a prefeitura não fez. Mas e a sociedade, fez o quê? Sobra sempre para o poder público. Não há lugar que não tenha deterioração. Não é só aqui. É aqui e no mundo.
José Francisco Alves, que é professor de escultura do Atelier Livre da prefeitura e pesquisa a arte pública de Porto Alegre há décadas, não conhece lugar em que se repita a deterioração vista na capital gaúcha:
— Não comparo Porto Alegre com Paris ou Barcelona. Comparo com Rio, com Vitória, com Belém, com Florianópolis, com Curitiba, onde as obras estão iluminadas, limpas, bonitas. Se você vai a Salvador e olha o Monumento ao Dois de Julho, uma estrutura enorme de mármore, não tem um pingo de pichação. Enquanto isso, os nossos principais monumentos estão podres. É algo sem parâmetro no país e no mundo. Porto Alegre precisa ir a um psiquiatra.
Alves diz que a forma de combater a deterioração é fazer conservação e manutenção cotidiana — até porque restaurar depois sai caro. Ele considera um bom modelo o do Rio de Janeiro, que tem uma equipe exclusiva para cuidar dos monumentos. Em Porto Alegre, cita como bom exemplo a recente restauração do Chafariz do Menino com a Concha, na Redenção, que segue íntegro porque há um funcionário designado para mantê-lo limpo e em funcionamento.
Farrapos ao pé da letra
Estátua de Giuseppe e Anita Garibaldi é uma das mais valiosas do país
Foto: Fernando Gomes
Os líderes da Revolução Farroupilha nunca mereceram tanto a alcunha de farrapos como agora. Nos monumentos que os homenageiam em Porto Alegre, estão em condição miserável. Um forasteiro que visitar a estátua equestre de Bento Gonçalves vai ter dificuldade para acreditar que ele é o herói máximo dos festejos de nossa data maior, o 20 de Setembro.
O imponente monumento realizado pelo escultor Antônio Caringi e inaugurado em 1936 vive uma situação de envergonhar qualquer gaúcho. Além de estar totalmente pichado, em tintas das mais variadas cores, teve recentemente uma cantaria de 400 quilos arrancada do pedestal. Os bandidos quebraram a pedra para tentar arrancar a placa que ela emoldurava.Não conseguiram.
Quem também sai de mais uma Semana Farroupilha em estado vexatório é a estátua de Giuseppe e Anita Garibaldi, inaugurada em 1913. Feito na Itália em mármore de carrara pelo renomado artista Filadelfo Simi, que dedicou três anos ao trabalho, o monumento é considerado um dos mais valiosos do país em termos históricos e artísticos. Mas está abandonado.
Enegrecido de imundície, foi coberto de pichações. No pedestal estão colados há uma eternidade cartazes que ninguém se dá ao trabalho de retirar. A Secretaria Municipal de Cultura afirma que a recuperação do monumento a Giuseppe e Anita Garibaldi é prioridade e que o processo para que isso aconteça já foi finalizado — um ano atrás, quando ZH publicou uma reportagem relatando os mesmos problemas, uma recuperação já era anunciada. A estátua de Bento Gonçalves vai ter de esperar mais.
— Está na nossa lista de prioridades para o ano que vem — afirma o coordenador da memória cultural, Luiz Antônio Custódio.
Conheça algumas relíquias perdidas de uma cidade que não existe mais. Em livro, pesquisador aponta cerca de 400 monumentos históricos da cidade. Grande parte foi perdida ou furtada nos últimos 15 anos
Em 1911, o chafariz que homenageava o Guaíba e seus afluentes foi desmontado Foto: Bruno Alencastro / Agencia RBS
Em 2004, depois de anos de pesquisa, o professor José Francisco Alves publicou o livro A Escultura Pública de Porto Alegre, um inventário detalhado de cerca de 400 monumentos da cidade. Quando enviou a obra a Barcelona, os espanhóis não acreditaram que uma cidade tivesse nas ruas o patrimônio listado.
— Chamaram-no para dar cursos sobre o tema.
Passada uma década, o que o leitor encontra ao folhear o livro não é um inventário de patrimônio, é uma Porto Alegre que não existe mais. No volume, Alves já denunciava o processo de perda da arte pública, mas o problema se agravou de lá para cá.
— O que chama a atenção é que a cidade tinha não só grande quantidade, mas também variedade de obras.
Segundo o pesquisador, uma parte considerável dos monumentos e esculturas foi perdida nos últimos 15 anos, devido a ondas de furtos ocorridas em 1999, 2002, 2008 e na virada de 2013 para 2014 — quando até bustos pesados de bronze de artistas importantes como Antônio Caringi e Fernando Corona foram roubados. O problema não foi apenas o crime. Alves cita como exemplo uma escultura patrolada durante uma obra da prefeitura. Mas a história de perda do patrimônio é mais antiga.
1865-1866 - Chafarizes monumentais (Vários locais)
Foto: Reprodução
Entre 1865 e 1866, foram instalados em Porto Alegre sete chafarizes de ferro fundido monumentais encomendados da França pelo governo na província. O objetivo era que eles fornecessem água e adornassem a cidade. Dois deles, o da Praça da Alfândega e o da Praça do Portão, foram inaugurados pelo próprio imperador D. Pedro II. Os demais ficavam na Praça da Caridade (atual Dom Feliciano), na Praça da Harmonia (hoje Brigadeiro Sampaio), no potreiro da Várzea (campus central da UFRGS), no Alto da Bronze (Praça General Osório) e na Praça do Mercado (Praça XV). Seis desses chafarizes desapareceram entre 1900 e 1920. O único que sobreviveu foi o que ficava diante do Mercado Público, hoje instalado na Redenção e conhecido como Chafariz Imperial.
1866 - Chafariz de mármore do Guaíba e afluentes (Praça Dom Sebastião)
Foto: Reprodução
Ao lado do Colégio Rosário, está o que restou do monumento mais antigo da Capital. São os resquícios de um chafariz que homenageava o Guaíba e seus afluentes (Caí, Sinos Gravataí e Jacuí), na Praça da Matriz. Em 1911, a obra foi desmontada, e as estátuas, desmembradas e colocadas em um depósito. Em 1924, o jornal Correio do Povo revelou que as peças haviam sido vendidas a uma marmoraria para virar pó de mármore. Após a repercussão, foram recompradas pela prefeitura, com a promessa de instalação na Praça Montevidéu — o que não aconteceu.
Os restos do monumento — as estátuas representando os quatro afluentes, mas não o chafariz e a estátua do Guaíba — voltaram a ser vistos só em 1935, na Praça Dom Sebastião, mas separados. Alvo de roubos e pichações, foram removidas em 1983.Voltaram à praça três anos depois, reagrupadas. A prefeitura promete transferi-las em breve para a hidráulica do Moinhos de Vento.
1927 - Busto de Apolinário Porto Alegre (Praça Argentina)
Foto: Reprodução
De autoria de Alfred Adloff, era considerado um dos bustos mais belos do país. Mostrava o escritor com ar pensativo, segurando um livro, nas proximidades do local onde costumava deixar o carro. Foi roubado em 2003. Segundo José Francisco Alves, a Câmara Municipal e a prefeitura passaram quase dois anos discutindo a transferência do monumento sem saber que ele já havia sido levado.
1940 - Os marcos de Vargas (Avenida Farrapos)
Foto: Reprodução
Dez anos depois de deixar o Rio Grande do Sul para derrubar o governo, Getúlio Vargas voltou a Porto Alegre em 1940, na condição de ditador, para protagonizar um surto inauguratório. Uma série de marcos espalhados pela cidade dão testemunho da visita. O mais notável deles é o obelisco que marca a inauguração da Avenida Farrapos, localizado na Praça Pinheiro Machado. Vargas descerrou o monumento de granito, com quatro metros de altura. As placas que ornavam o obelisco sumiram.
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