ZERO HORA 01 de fevereiro de 2014 | N° 17691
POR NILSON MARIANO
BRASIL DE HOJE
No tabuleiro da política brasileira, os eventos de 2013 e as pressões sociais e econômicas que o Brasil ainda vivencia devem influenciar a corrida eleitoral de 2014
O tabuleiro sobre o qual se travará a próxima eleição está incompleto – e isso é absolutamente normal faltando oito meses para a realização do primeiro turno. Mas algumas peças já se posicionam no espaço quadriculado, tanto sobre o branco quanto sobre o preto, antecipando-se como possíveis protagonistas no jogo eleitoral.
Cientistas sociais se acautelam nas análises, por agora. Compreende-se: palpitar sobre eleições pode ser tão incerto como arriscar a previsão do tempo, ainda mais no instável cenário brasileiro, sujeito a guinadas políticas bruscas. No entanto, o filósofo Roberto Romano, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diz que já se pode identificar as peças mais salientes.
De um lado, perfilam-se as peças da insatisfação popular, como as que voltaram a eclodir nos últimos dias, notadamente em São Paulo, contra a realização da Copa. Sobram queixas para o transporte público desconfortável, caro e ineficiente, enquanto o governo torra dinheiro em estádios de utilidade duvidosa. O mesmo descontentamento abrange os serviços de educação, saúde, segurança e logística.
Na outra parte, alinham-se as peças de matiz econômico e político. O dragão da inflação debochou da caderneta de poupança, ano passado, e mordisca os salários. A indústria brasileira não deslancha, esbarrou na precariedade dos portos e das rodovias e no atraso tecnológico. Atitudes como a do senador Renan Calheiros (PMDB), que usou a frota da Força Aérea Brasileira (FAB) como táxi aéreo duas vezes, uma para implantar fios de cabelo na pronunciada careca, amplificam o desagrado.
– O tabuleiro está montado. Vai depender de quem jogar e qual peça será movida – observa Roberto Romano, doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales.
Ativistas de junho são uma incógnita
Seria precipitado supor como agirão os movimentos sociais nas eleições. O vendaval popular que sacudiu o país em junho de 2013 parece ter refluído, voltado ao leito das águas calmas – os últimos espasmos são autoria dos radicais Black Blocs. Romano percebe grupos autônomos de oposição, enquanto outros estão vinculados ou foram cooptados pela máquina governista do Partido dos Trabalhadores. São os neo-chapa-brancas, os assumidos e constrangidos, na última categoria aqueles que trocaram o passado de lutas por cargos, salários e verbas.
– Não vejo, por parte dos movimentos sociais e mesmo entre os partidos, uma estratégia capaz de levar o povo para as ruas e influir nas eleições – ressalta o professor da Unicamp.
Se acontecer uma nova onda de contestação em massa, como a de junho, não será por iniciativa de líderes, mas pelo rebentar de alguma situação imponderável. Romano exemplifica que o governo de São Paulo está às voltas com os sem-teto há décadas. Quanto mais a polícia reprime, mais o movimento cresce. É como um ioiô, que desce mas sempre torna a se elevar na direção de quem aciona o cordel.
– Chega-se a um limite em que não se pode controlar as massas, o estouro torna-se irreversível – alerta Romano, citando um dos seus pensadores preferidos, o escritor búlgaro Elias Canetti.
O cientista político André Marenco não acredita que as multidões de junho possam direcionar as eleições. Se voltarem às praças, deverão provocar um “impacto residual”, sem desequilibrar a balança para um dos lados.
Professor de pós-graduação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Marenco diz que a tempestade democrática do inverno de 2013 resultou de uma contradição. Nos últimos 10 anos de PT, houve avanços inegáveis: maior renda e consumo, menos desemprego, redução da desigualdade, ascensão de classes desfavorecidas.
Em contrapartida, o governo não conseguiu lançar uma agenda de reformas política, econômica e administrativa. As instituições continuam funcionando do mesmo jeito – obsoletas e ineficazes. Marenco lamenta que o PT, para se manter no poder, precise fazer alianças com setores atrasados e oportunistas, o que significa conviver com o clientelismo e a corrupção.
– O resultado é que temos uma máquina pública pouco responsiva, pouco sensível à população – avalia.
Junho foi intenso como um furacão, mas de duração limitada. Derrubou a popularidade da presidente Dilma Rousseff, conforme as pesquisas de opinião da época, mas os índices tornaram a subir depois. O próprio movimento, ao ser envolvido pela tática de vandalismo e violência dos Black Blocs, recuou .
– Houve um momento em que catalisou o sentimento latente de inconformidade, mas não tinha uma agenda para se manter – diz Marenco.
As eleições tendem a ser chochas. O professor da UFRGS não quer fazer apologia, mas lembra que a rotina de votar pode diminuir o apetite da população. É o fastio da democracia, como ocorreu no Chile, em dezembro, quando a socialista Michelle Bachelet foi eleita pela segunda vez à presidência, mas sob uma abstenção de quase 60%. Como o voto não é mais obrigatório no Chile, os eleitores desertaram.
No Brasil, o que incomoda Roberto Romano é a peculiaridade das campanhas eleitorais. Os políticos, do Executivo e do Legislativo, estão à caça de votos mesmo no exercício dos mandatos. A reeleição parece ser o objetivo maior. O que era para ser uma vocação temporária virou profissão – e das mais atraentes. Gordas aposentadorias vitalícias, como as que são pagas a ex-governadores gaúchos por terem ficado quatro anos no Palácio Piratini por vontade própria, garantem um futuro que é negado à totalidade dos trabalhadores.
Fator Lula, o “condottiero”
A peça mais decisiva do tabuleiro eleitoral, para Marenco, será a economia. Em 2010, foi valiosa para que Luiz Inácio Lula da Silva emplacasse a sucessora no Planalto. A situação não se deteriorou, o Brasil resistiu às reverberações da crise internacional, mas um deslize financeiro poderia afetar a reeleição de Dilma. Seriam os percentuais de emprego e renda, e não o clamor das ruas, que balizariam os votos.
O sociólogo Francisco Maria Cavalcanti de Oliveira, o Chico de Oliveira, tem uma interpretação um pouco diferente. Acha que o fator preponderante será o ex-presidente Lula, a quem define como um “condottiero autoritário”, em referência aos chefes de milícias mercenárias com poderes ilimitados nas guerras antigas. Na condição de um dos fundadores do PT, critica:
– Infelizmente, ele tem o poder. Já tirou dois coelhos da cartola, a Dilma e o Hadadd (Fernando Haddad, eleito prefeito de São Paulo pelas mãos de Lula).
Professor da Universidade de São Paulo (USP), Chico de Oliveira acredita que Lula neutralizou e continuará subjugando a oposição, porque, entre outras estratégias, adotou um programa de governo neoliberal, nos moldes propostos pelo arquirrival PSDB. Não atribui o mérito exclusivamente a Lula, esclarece que a debilidade das oposições facilitou a manobra.
– Ou os tucanos desmontam o Lula, ou terão de esperar um novo ciclo político – destaca o sociólogo, pós-graduado na École des Hautes Études en Sciences Sociales.
A exemplo de André Marenco, Chico de Oliveira espera uma eleição “morna”. Diz que a sociedade “está satisfeita e acomodada”, porque a inflação não é assustadora e o nível de emprego se mantém. Também não detecta vigor nos movimentos sociais, mesmo os independentes, porque não conseguiram imprimir sua marca.
– Não há muito o que esperar dessa eleição. A política não está processando os conflitos reais da sociedade – analisa.
Haverá um “efeito Copa”?
O que ocorrer fora dos gramados, na Copa do Mundo, poderá repercutir nas urnas, não se sabe com que intensidade. Lembre-se que a Fifa instalou um enclave, com regras próprias, no território brasileiro. Uma das exigências, contrariando a legislação daqui, foi permitir a venda de bebida alcoólica nos estádios durante os jogos. Para o filósofo Roberto Romano, A Fifa se comporta com “arrogância e falta de respeito”. Não se surpreenderia se alguma falha nos preparativos, como na venda de ingressos, deflagrassem protestos.
O professor de comunicação digital Marcelo Träsel, da Pontifícia Universidade Católica (PUCRS), lembra que as redes sociais devem canalizar as manifestações. Também serão a plataforma para debates políticos. Apesar de o brasileiro ter aprendido a usar a ferramenta virtual, Träsel acha que as discussões poderão ser algo caóticas.
– Deve ter muita gente gritando para todo o lado, mas poucos discutindo propostas com mais racionalidade. As pessoas reagem primeiro, analisam depois – pondera.
Será o reinado do Facebook. Träsel diz que os blogs despontaram até 2010, oferecendo informação política, mas decaíram a partir de 2012. O Facebook assumiu como porta-voz virtual, tem espaço ilimitado, mas não é uma âncora visível como o blog. Os conteúdos podem se perder no oceano de sucessivas postagens.
Militantes organizados devem se fazer ouvir no que Träsel chama de “algaravia geral” nas redes sociais. Multiplicarão suas mensagens, terão poder de mobilização, como já demonstraram nas lufadas de junho. Se resolverem, podem ser uma das peças mais ativas do tabuleiro eleitoral.
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