EL PAÍS, 21 OCT 2014 - 09:55 BRST
A campanha eleitoral do Brasil exibe uma dualidade que é constitutiva do populismo em toda a América Latina
Carlos Pagni
Se perguntassem aos brasileiros como foram para eles os Governos do Partido dos Trabalhadores (PT) da porta de suas casas para dentro, Dilma Rousseff ganharia com folga as eleições do próximo domingo. Mas, se forem consultados por suas vidas da porta de suas casas para fora, o vitorioso seria Aécio Neves, o candidato do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Não é um fenômeno local. A campanha eleitoral do Brasil exibe uma dualidade que é constitutiva do populismo em toda a América Latina.
Na última década o país foi testemunha de uma grande mobilidade social. Saíram da pobreza 35 milhões de pessoas. São a denominada nova classe média brasileira, ou classe C. Essa população protagonizou um boom de consumo. Em 2013 as vendas de smartphones cresceram 118%. E 35% dos usuários são da classe C. A venda de carros passou de 1.300.000 em 2005 para 2.400.000 em 2013. E 48% corresponde à nova classe média. Entre 2002 e 2012 esse setor gastou 277% a mais em turismo e 150% a mais em roupas. Em 2013 destinou a eletrônicos 122% mais dinheiro que em 2010.
A propaganda do PT se dirige a esse Brasil. Nos anúncios aparece Luiz Inácio Lula da Silva recordando um país no qual, para os pobres, não era costume construir casas, ter carros zero quilômetro, viajar de avião ou ir a um restaurante. Dilma repete o monólogo, enumerando subsídios para reformas de casas ou aquisição de eletrodomésticos.
Em seu afã por sacralizar o presente, o populismo se desliga do futuro. Nessa prioridade está a semente de sua decadência
Esse ciclo de consumo encontrou um limite na deterioração da vida pública. Em meados do ano passado o desajuste se expressou nos protestos nas grandes cidades do país. A população saiu à rua para se queixar porque os hospitais, ônibus ou escolas não eram “padrão FIFA”, como os estádios que estavam sendo construídos.
Essas mobilizações, inauguradas em São Paulo após o aumento no preço do transporte, evidenciaram as penúrias que se tem de enfrentar quando se transpõe a porta de casa. Apesar dos progressos registrados na segurança de cidades como o Rio de Janeiro, a taxa de homicídios de 2012 foi de 21 a cada 100.000 habitantes. É verdade que na Venezuela foi de 37. Mas no Chile foi de 2.
Das estradas brasileiras, somente 12% estão asfaltadas. O Tribunal de Contas avaliou em 2013 que 81% dos 116 hospitais mais requisitados estão em más condições.
Aécio ataca Dilma nesses flancos. Em seus anúncios ele a critica por ter feito somente 12% das obras de infraestrutura prometidas; ter provocado 181 apagões desde 2011; ter endividado a Petrobras para subsidiar o combustível; e não ter construído um porto sequer.
As mobilizações, iniciadas em São Paulo após o aumento no preço do transporte, evidenciaram as penúrias que se tem de enfrentar quando se transpõe a porta de casa
Um artigo do jornal O Globo com base em estatísticas oficiais desnuda essas duas caras do Brasil: 50% das famílias que sobrevivem nas favelas pertencem à nova classe média.
A contradição sobre a qual se organiza o debate é intrínseca ao modelo. No Brasil aparece atenuada uma deformação que na Argentina e na Venezuela é caricatural. Em seu afã por sacralizar o presente, o populismo se desliga do futuro. Premia o consumo, não a poupança. O gasto, em vez do investimento. E se empenha mais em ampliar subsídios do que em criar trabalho genuíno. Nessas prioridades estão as sementes de sua decadência.
Por causa da defasagem cambial e do déficit de infraestrutura, a economia brasileira perdeu competitividade. Este ano não deve crescer. Mas a inflação estará em 6%, um ponto e meio acima da meta oficial. Como o crédito foi decisivo na criação da nova classe C, a desaceleração surpreende os brasileiros com um nível de dívida preocupante. Segundo a consultoria Serasa, 60 milhões de consumidores estão com dívidas. Lula atemoriza os eleitores dizendo que, se Aécio for eleito, perderão o que adquiriram. Mas isso também poderá acontecer com uma vitória de Dilma. A fragilidade é macroeconômica.
A esquizofrenia do bem-estar doméstico e da inquietação pública não é paradoxal. Está na essência do projeto populista. O Governo de Dilma, em menor medida que o de Cristina Kirchner (Argentina) e Nicolás Maduro (Venezuela), menospreza a iniciativa privada, distorce os preços com subvenções e exalta a distribuição da riqueza muito mais do que a sua criação. Esse estilo afugenta a corrente de investimentos que as obras públicas ou a exploração energética requerem.
Maduro dá tablets de presente, mas conectar-se à Internet na Venezuela leva mais de 15 minutos. Cristina Kirchner multiplicou os celulares, mas como não se preocupou com a interconexão, os argentinos já não conseguem comunicar-se pelo celular. De vez em quando a antítese adquire um signo trágico. Em abril do ano passado, a falta de obras hidráulicas produziu uma inundação em La Plata, a capital da província de Buenos Aires. Houve 89 mortes. A televisão mostrava as telas de plasma que saíam, flutuando, das casas mais humildes.
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