ZERO HORA 22 de março de 2015 | N° 18109
FLÁVIO TAVARES*
A palavra dura, quando justa, não é dura, mas apenas justa. Até o palavrão pode deixar de ser grotesco, se pronunciado no momento exato para denunciar a injustiça ou o crime. “Agarrem este filho da p.!”, ouvi alguém gritar, apontando para quem lhe tinha roubado a carteira na Rua da Praia no distante 1960-61, quando roubar era ainda crime horrendo. Ninguém sabia da mãe do assaltante, mas o palavrão serviu para que outros transeuntes o agarrassem metros adiante. Em síntese: a ofensa não é a palavra dura ou soez, mas aquilo que leva a pronunciá-la. Obsceno é o fato, não o verbo.
Por isso, a cena filmada do então ministro Cid Gomes no plenário da Câmara dos Deputados, dia 18 de março (em que chamou “alguns, vários ou muitos parlamentares” de “achacadores e oportunistas”), deveria ter exibição obrigatória na TV e nas escolas, além de repetida no rádio. Ali está o resumo da vida partidária desde que emergimos da ditadura direitista que fez do oportunismo e da adulação a forma única da política. A ferida foi tão profunda, que não cicatrizou até hoje, em plena democracia.
Duas perguntas: as palavras do então ministro da Educação não expressaram um desabafo autêntico sobre o parlamento, tal qual dizemos em casa ou no trabalho? Independente do lado em que votemos, não é revoltante “o oportunismo dos achacadores” que “sem largar o osso” usam a política em proveito próprio?
Dias antes, Cid Gomes tinha dito em público que “300 ou 400 achacadores” se dedicavam apenas a usufruir vantagens. Sem citar nomes, aludia ao PMDB que preside a Câmara Federal e o Senado. E os ofendidos exigiram que se desculpasse em sessão plenária... E aí, Cid frisou que respeitava o parlamento mas não se desdisse e lançou aquele “não querem largar o osso”, resumo da mais autêntica expressão popular sobre a política. A batalha virou guerra total contra “o mal- educado ministro da Educação”, que bradou, então, para o presidente da Câmara: “Prefiro ser mal-educado a ser acusado de achaque”.
Conclusão: deputados pró e contra o governo uniram-se exigindo a demissão do ministro e sua punição. E a Câmara irá processá-lo por “injuriar o parlamento”. Só os deputados do pequeno PSOL e alguns conterrâneos do cearense Cid com ele se solidarizaram.
Não foi um bate-boca, mas a radiografia da penúria em que transformaram “a política”. Ex- governador do Ceará (hoje no Pros, partido criado do nada, quase legenda de aluguel), sem vínculos com o ensino, Cid não poderia ter sido ministro da Educação num governo que pretende “uma pátria educadora”. Mas não foi demitido por isso.
Foi demitido por dizer o que dizem todos. Suicidou-se como ministro atirando nos que se resguardam nos privilégios do “foro privilegiado”.
Domingo passado, as passeatas contra a corrupção mobilizaram o país inteiro num movimento espontâneo, mostrando que já não necessitamos de falsos tutores.
Mas, como nos protestos de junho de 2013, surgiram vândalos e dementes infiltrados. Antes, quebraram vitrines e ônibus. Agora, a minoria paranoica pedia “intervenção militar”, como se o crime maior (o golpe de Estado) curasse a epidemia nascida do próprio golpe.
Sim, pois só num sistema aberto e livre pode-se denunciar a corrupção ou os desmandos e punir os corruptos, como se faz agora no assalto em que PT, PMDB e PP se uniram a grandes empresas. A demência senil que prega a ditadura não sabe o que foi a ditadura, quando a minoria no poder escondia e ocultava o crime – todos os crimes, não só a corrupção.
Se obsceno é o fato, não o verbo, que palavra dura deve definir os vândalos infiltrados de 2015, que pregam incendiar o país, não apenas ônibus como em 2013?
*Jornalista e escritor
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