ZERO HORA 28 de março de 2015 | N° 18115
INFORME ESPECIAL | Tulio Milman
Desculpem o atraso. Sei que a festa foi quinta-feira. Mas não consegui chegar antes. Acordei, tomei banho, me vesti. Só que, na hora de sair, faltou luz. O portão da garagem travou. Levei meia hora para abrir.
Peguei a Ipiranga. Trancada. Era uma manifestação livre e democrática. Desci do carro para ver de perto. Me distraí. Roubaram minha carteira.
Levei duas horas para cancelar os cartões e o talão de cheques. Call center. Você me entende.
Fui dar queixa na delegacia. Não tinha gente pra me atender. Cortaram as horas extras. Fiquei nervoso, minha pressão subiu. Chamaram o Samu. Três horas pra chegar.
No hospital, passei na triagem. Meu caso não era grave, fiquei ali esperando. Me levaram pra uma sala grande, cheia de gente. Tinha um cara algemado do meu lado. Sem estresse, #somostodossereshumanos.
De repente, começou a gritaria. Quatro caras encapuzados invadiram o hospital. Tiros. Me joguei pra baixo da mesa. “Desculpe, desculpe, eu juro que já paguei o IPTU”, berrei.
Logo vi que o alvo era o cara algemado do meu lado. Entrei em choque. Me deram um remédio. Apaguei.
No outro dia, mais calmo, tentei de novo. Achei que ainda pegaria o fim da festa. Essas celebrações sempre se estendem. Na segunda esquina, meu carro caiu num buraco. O pneu dianteiro estourou. A roda entortou. Chamei a EPTC. “Seus documentos, por favor”, pediu o azulzinho. Botei a mão no bolso. Lembrei que haviam me roubado. “Então, tu estavas dirigindo sem carteira de habilitação...” Veículo apreendido. Multa. Processo. Prisão perpétua.
Mas milagres acontecem. Pouco depois, recebi um telefonema animador. Acharam minha carteira. Sem dinheiro, mas com os documentos. “Sai uma recompensa aí, né, patrão?”. Sai, claro que sai.
Fui buscar a carteira. Com ela, tentei liberar o carro. Tinha que pagar uma taxa, ou multa ou sei lá o quê. Cheguei ao banco. A porta estava trancada por manifestantes. “Mas é urgente”, dissemos eu e um aposentado que precisava comprar remédio. Nada. Não nos deixaram entrar.
O jeito foi pegar um busum e tentar voltar pra casa. No caminho, o motor fez um ruído estranho. Um estrondo. E parou. Todos pra fora. A renovação da frota está atrasada. Mais de 200 ônibus novos deveriam estar nas ruas. Não estão.
Começou a chover. A rua alagou. Tirei a camisa e comecei a nadar. Da sacada, alguém berrou: “Bem feito, colorado f.d.p.”.
Algumas braçadas depois, cheguei a um bar.
Entrei. Comecei a beber. Lá pelas tantas, cantei Parabéns a Você sozinho para Porto Alegre. “Muizos anuz ze vidaaaaaa....”. Depois não me lembro. Acordei em casa, cercado pelo carinho e pelo amor da família. “Não foi nada, não foi nada”, me dizia minha filha de nove anos.
Espero que vocês acreditem nos motivos do meu atraso. Porque se eu tiver que buscar um atestado, talvez só chegue para a festa do ano que vem. Mas faço questão de estar nela.
A gente só celebra, exagera na ficção e pega no pé porque gosta. E isso faz toda a diferença.
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