ZH 07/10/2014 | 04h44
David Coimbra
Jardel foi eleito deputado. E um pedaço do Rio Grande se levantou de indignação, como se fosse um só homem. Mas que absurdo um sujeito que só sabia cabecear a bola para dentro do gol, coisa que nem sabe mais fazer, que absurdo um tipo desses ser eleito deputado.
Os que protestam em geral são os luminares da nossa juventude dourada, a nossa intelligentsia, a nossa elite intelectual, que cevou seus cérebros bem fornidos nos bancos da academia. Não surpreende: jovens são mesmo autoritários e conservadores. O que pode significar o voto em Jardel, quando havia em alternativa tantos candidatos de partidos orgânicos, com experiência na vida pública e serviços prestados à comunidade? Ora, talvez o voto em Jardel signifique que as pessoas, precisamente, não estão satisfeitas com os candidatos dos partidos orgânicos, com experiência na vida pública e serviços prestados à comunidade.
Talvez esses candidatos e seus partidos tenham decepcionado a população. Se for assim, o eleitor está aceitando o conselho genial de Tiririca: “Pior não fica”. E não fica mesmo, porque são duas as grandes traições numa democracia: a primeira é a tentativa de sabotagem do sistema para a implantação de qualquer regime autoritário; a segunda é a corrupção. A democracia pode conviver sem maiores problemas com a incompetência. Na verdade, a incompetência faz parte da democracia, está dentro do seu processo evolutivo.
Um incompetente é eleito hoje, depois perde a eleição e um competente se elege em seu lugar, e então esse competente perde a eleição seguinte por algum motivo e outro incompetente é eleito, mas mais tarde o competente elege-se outra vez. Isso acontece sem sobressaltos numa democracia consolidada. As pessoas sabem que o sistema vai funcionar sempre, mesmo que elas votem mal de vez em quando.
A corrupção, porém, corrói o sistema por dentro. As pessoas deixam de acreditar que seus representantes sejam capazes de chegar ao poder sem negociar suas convicções. Pegue o exemplo dos dois grandes partidos que vão disputar a presidência da República no segundo turno. Eles comandam o Brasil há 20 anos, e há 20 anos os governos brasileiros estão submersos nas águas fétidas da corrupção. O eleitor olha para um, olha para outro e pensa: “Pior não fica”.
Em seguida, reflete sobre seus problemas comezinhos, no seu drama diário. Por exemplo: o gremista que viu seu time perder para o São Paulo na Arena porque Felipão tem à sua disposição um único jogador que sabe fazer gol, o que estará na cabeça desse gremista, na hora em que ele estiver na cabine indevassável? Pode ser que ele pense: “Quem sabe eu elejo alguém que vá ajudar o Grêmio de alguma forma?” E vota no Jardel, porque é isso que o Jardel promete: ajudar o Grêmio.
É um voto legítimo. Mais: é um voto consciente. O grande problema da vida desse eleitor, naquele momento, é esse: ele quer que o Grêmio conquiste títulos. Você, que é tão esclarecido, pode achar esse eleitor imbecil, mas esse é o problema dele, é isso que o aflige. Para ele, pouco importa se a maconha será ou não liberada, se os gays poderão ou não se casar, se o escândalo da Petrobras vai ou não derrubar o governo ou se haverá outra greve dos professores em março.
Para ele, o que importa é o Grêmio. Você ficou brabo por causa do voto do seu irmão, você disse que é uma vergonha, uma falta de noção política, mas a beleza da democracia é exatamente essa: é a convivência de quem se preocupa exclusivamente com futebol com quem acha ter a fórmula infalível de resolver a questão da dívida pública.
E mais: é possível que esse eleitor que se preocupa exclusivamente com futebol suspeite que a sua fórmula infalível para resolver a questão da dívida pública não seja infalível, é possível que ele considere que o seu partido tenha se corrompido na busca pelo poder, é possível que ele tenha concluído que pior não fica. É possível, é bem possível. Gol do Jardel.
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