Um retrato da falta de controle na Assembleia Legislativa gaúcha. ZH acompanhou servidora e constatou que ela costuma não cumprir todo o expediente
Rotina da servidora Lídia Schons foi acompanhada por 15 dias intercalados em março, abril e maioFoto: Jean Schwarz / Agencia RBS
Adriana Irion
A Assembleia Legislativa, uma instituição que gasta R$ 170 milhões por ano para pagar 1,5 mil funcionários e tem no seu rol de atribuições a de fiscalizar os demais poderes do Estado, não consegue atestar se cada um de seus servidores exerce a jornada de trabalho prevista em lei. A histórica resistência do parlamento em aperfeiçoar o seu sistema de controle acaba abrindo brechas para o surgimento de distorções.
O Legislativo gaúcho não utiliza cartão-ponto nem exige dos deputados relatórios sobre o que fazem os funcionários que são pagos para atuar fora da sede. Basta apenas a assinatura do chefe ou de um colega para comprovar se alguém cumpriu ou não expediente.
Nesta reportagem, Zero Hora expõe o caso de uma servidora da Assembleia que costuma trabalhar apenas pela manhã, ganha salário bruto de R$ 24,3 mil — acima do teto de R$ 24,1 mil da Casa — e afirma ter autorização para "sair mais cedo". De todos gestores que poderiam ser responsáveis pela ausência dela, nenhum confirma ter autorizado a jornada reduzida.
Lídia Rosa Schons, 54 anos, deveria trabalhar oito horas por dia no gabinete do deputado Paulo Azeredo (PDT), onde atua como recepcionista, atendendo a telefonemas e organizando agendas. Em 15 tardes entre março e maio, ZH observou a rotina dela. De 15 dias de levantamento, em 13 ela só cumpriu expediente pela manhã. Segundo a Assembleia, sete desses 13 dias estão dentro de um período de férias que a funcionária tirou. Lídia disse a ZH que tirou os 30 dias apenas "no papel".
Servidora recebe a terceira maior FG
Nas horas em que deixou de estar no trabalho, enquanto ainda morava em um apartamento alugado a 280 passos do parlamento, Lídia dividiu o tempo entre passeios nas imediações da Praça da Matriz com Bob, seu cachorro, e a realização de compras no comércio da região.
Servidora do parlamento há 33 anos, ela é um retrato não só de distorções criadas a partir do descontrole como da ausência de critérios objetivos para a distribuição de funções gratificadas (FGs) ou de cargos em comissão (CCs). Lídia ingressou na Casa em 1979, como servente, pelo regime de CLT. Adquiriu estabilidade, passando a ter os mesmos direitos de um servidor do quadro. Trabalhava fazendo xerox no setor de imprensa e, depois, construiu carreira como recepcionista, segundo ela mesma conta a ZH.
Com Ensino Fundamental completo, tem salário básico de R$ 3.028,91, engordado por quatro FGs já incorporadas e por uma função gratificada atual de R$ 10.491,12, de mesmo valor destinado a cargos de diretoria e de presidência de comissão, por exemplo. A escolha que a levou a receber essa FG, a terceira maior do parlamento, tem base em critérios "subjetivos, políticos", segundo explica a Assembleia. Isso porque a função foi destinada a ela por decisão da área parlamentar e não da administração da Casa. Hoje, com todos os benefícios, o pagamento bruto de Lídia ultrapassa o teto pago pelo parlamento. O excedente é descontado.
Casos como o de Lídia embasam, por exemplo, uma queixa histórica de funcionários concursados, titulares de formação e qualificação em áreas diversas: a de serem preteridos no acesso a cargos com salários mais altos em razão das preferências políticas que ditam a distribuição, especialmente, de funções gratificadas. A situação de Lídia também mostra que não há critério técnico para substituições. Em pelo menos duas oportunidades ela trabalhou no lugar de colegas com formação superior que se afastaram em licença-prêmio.
A administração da Casa se exime de responsabilidade por qualquer irregularidade no caso. Segundo o superintendente-geral, Fabiano Geremia, Lídia está cedida à área parlamentar e quem deve explicações é o deputado que atestou a efetividade da funcionária.
Começa então outro capítulo de uma história recorrente na Assembleia: a transferência de responsabilidades (confira entrevistas na página 6).
Postal admite adoção de cartão-ponto
Em março, quando a Polícia Federal indiciou 11 pessoas por suspeita de terem recebido da Assembleia sem trabalhar, o presidente da Casa, deputado Alexandre Postal (PMDB), admitiu não ter condições de garantir que não existissem mais funcionários fantasmas no parlamento.
Na ocasião, disse que receber salário sem ir ao trabalho era "um tapa na cara do cidadão", instalou novo sistema de câmeras e aumentou a lista de pessoas responsáveis por atestar a efetividade dos funcionários. O objetivo era coibir casos como o de Lídia, em que o deputado que declarou o trabalho sequer conhece a servidora.
— Com as medidas que adotamos, já houve avanços. Gente que nunca aparecia começou a aparecer. Mas com essa nova denúncia, o processo natural deve ser a Assembleia adotar o cartão-ponto — afirma Postal.
ENTREVISTA - “Trabalho das 8h30min às 13h30min”
Na tarde de 26 de junho, entre 15h e 15h30min (horário em que deveria estar no trabalho) Lídia Schons, conversou com ZH enquanto passeava com seu cão, numa praça próxima a seu apartamento, no bairro Medianeira. A seguir, a entrevista.
ZH – Qual seu horário de trabalho na Assembleia?
Lídia – Trabalho até as 13h30min. Das 8h30min às 13h30min.
ZH – Por que só meio turno?
Lídia – Tenho que sair porque tenho uma mãe que não é boazinha, peço a eles para sair e cuidar dela.
ZH – A senhora trabalha à tarde na Assembleia?
Lídia – Não, de tarde não.
ZH – A senhora sempre fez só meio turno?
Lídia – É, às vezes eu faço. Às vezes trabalho o dia todo. São alguns dias. Não são todos os dias que eu saio.
ZH – Quando trabalhava no Departamento de Saúde, antes de trabalhar com o deputado, a senhora também saía mais cedo?
Lídia – Sim. Eu pedia para eles mesmo. Eles me davam remédio para ela (a mãe doente).
ZH – Atualmente quem libera a senhora é o deputado?
Lídia – É o assessor. Quem manda é o assessor mesmo.
ZH – O chefe de gabinete?
Lídia – É, o chefe de gabinete.
ZH – Servidores da Assembleia reclamam que pessoas ganham funções e não trabalham o horário todo.
Lídia – Só peço para sair de vez em quando. Às vezes, eu venho. Às vezes, eu volto. Depende como ela (mãe) está.
ZH – A senhora tem função gratificada (FG) de mais de R$ 10 mil. Seu salário bruto é de R$ 24,3 mil, superior ao teto salarial da Assembleia.
Lídia – Não. Meu básico é baixo, chega a R$ 3 mil.
ZH – Mas a FG é de R$ 10 mil.
Lídia – Só que não vem toda, desconta. Não dá muito.
ZH – A senhora incorpora a FG agora na aposentadoria?
Lídia – Eu espero que leve um pouquinho mais.
ZH – Qual é o seu salário?
Lídia – Dá oito e pouco.
ZH – No gabinete do deputado a senhora é só recepcionista?
Lídia – Sou recepcionista e faço as coisas que ele pede.
ZH – Seus colegas não reclamam de a senhora trabalhar só de manhã?
Lídia – É que não são todos os dias. Eu venho (em casa, no bairro Medianeira), vejo ela, quando ela tá bem, até volto.
ZH – Nós observamos sua rotina. A senhora não trabalhava de tarde.
Lídia – A gente combina que quando eles querem eu vou. Vou nas campanhas, saio, daí pago eles.
A Assembleia Legislativa, uma instituição que gasta R$ 170 milhões por ano para pagar 1,5 mil funcionários e tem no seu rol de atribuições a de fiscalizar os demais poderes do Estado, não consegue atestar se cada um de seus servidores exerce a jornada de trabalho prevista em lei. A histórica resistência do parlamento em aperfeiçoar o seu sistema de controle acaba abrindo brechas para o surgimento de distorções.
O Legislativo gaúcho não utiliza cartão-ponto nem exige dos deputados relatórios sobre o que fazem os funcionários que são pagos para atuar fora da sede. Basta apenas a assinatura do chefe ou de um colega para comprovar se alguém cumpriu ou não expediente.
Nesta reportagem, Zero Hora expõe o caso de uma servidora da Assembleia que costuma trabalhar apenas pela manhã, ganha salário bruto de R$ 24,3 mil — acima do teto de R$ 24,1 mil da Casa — e afirma ter autorização para "sair mais cedo". De todos gestores que poderiam ser responsáveis pela ausência dela, nenhum confirma ter autorizado a jornada reduzida.
Lídia Rosa Schons, 54 anos, deveria trabalhar oito horas por dia no gabinete do deputado Paulo Azeredo (PDT), onde atua como recepcionista, atendendo a telefonemas e organizando agendas. Em 15 tardes entre março e maio, ZH observou a rotina dela. De 15 dias de levantamento, em 13 ela só cumpriu expediente pela manhã. Segundo a Assembleia, sete desses 13 dias estão dentro de um período de férias que a funcionária tirou. Lídia disse a ZH que tirou os 30 dias apenas "no papel".
Servidora recebe a terceira maior FG
Nas horas em que deixou de estar no trabalho, enquanto ainda morava em um apartamento alugado a 280 passos do parlamento, Lídia dividiu o tempo entre passeios nas imediações da Praça da Matriz com Bob, seu cachorro, e a realização de compras no comércio da região.
Servidora do parlamento há 33 anos, ela é um retrato não só de distorções criadas a partir do descontrole como da ausência de critérios objetivos para a distribuição de funções gratificadas (FGs) ou de cargos em comissão (CCs). Lídia ingressou na Casa em 1979, como servente, pelo regime de CLT. Adquiriu estabilidade, passando a ter os mesmos direitos de um servidor do quadro. Trabalhava fazendo xerox no setor de imprensa e, depois, construiu carreira como recepcionista, segundo ela mesma conta a ZH.
Com Ensino Fundamental completo, tem salário básico de R$ 3.028,91, engordado por quatro FGs já incorporadas e por uma função gratificada atual de R$ 10.491,12, de mesmo valor destinado a cargos de diretoria e de presidência de comissão, por exemplo. A escolha que a levou a receber essa FG, a terceira maior do parlamento, tem base em critérios "subjetivos, políticos", segundo explica a Assembleia. Isso porque a função foi destinada a ela por decisão da área parlamentar e não da administração da Casa. Hoje, com todos os benefícios, o pagamento bruto de Lídia ultrapassa o teto pago pelo parlamento. O excedente é descontado.
Casos como o de Lídia embasam, por exemplo, uma queixa histórica de funcionários concursados, titulares de formação e qualificação em áreas diversas: a de serem preteridos no acesso a cargos com salários mais altos em razão das preferências políticas que ditam a distribuição, especialmente, de funções gratificadas. A situação de Lídia também mostra que não há critério técnico para substituições. Em pelo menos duas oportunidades ela trabalhou no lugar de colegas com formação superior que se afastaram em licença-prêmio.
A administração da Casa se exime de responsabilidade por qualquer irregularidade no caso. Segundo o superintendente-geral, Fabiano Geremia, Lídia está cedida à área parlamentar e quem deve explicações é o deputado que atestou a efetividade da funcionária.
Começa então outro capítulo de uma história recorrente na Assembleia: a transferência de responsabilidades (confira entrevistas na página 6).
Postal admite adoção de cartão-ponto
Em março, quando a Polícia Federal indiciou 11 pessoas por suspeita de terem recebido da Assembleia sem trabalhar, o presidente da Casa, deputado Alexandre Postal (PMDB), admitiu não ter condições de garantir que não existissem mais funcionários fantasmas no parlamento.
Na ocasião, disse que receber salário sem ir ao trabalho era "um tapa na cara do cidadão", instalou novo sistema de câmeras e aumentou a lista de pessoas responsáveis por atestar a efetividade dos funcionários. O objetivo era coibir casos como o de Lídia, em que o deputado que declarou o trabalho sequer conhece a servidora.
— Com as medidas que adotamos, já houve avanços. Gente que nunca aparecia começou a aparecer. Mas com essa nova denúncia, o processo natural deve ser a Assembleia adotar o cartão-ponto — afirma Postal.
ENTREVISTA - “Trabalho das 8h30min às 13h30min”
Na tarde de 26 de junho, entre 15h e 15h30min (horário em que deveria estar no trabalho) Lídia Schons, conversou com ZH enquanto passeava com seu cão, numa praça próxima a seu apartamento, no bairro Medianeira. A seguir, a entrevista.
ZH – Qual seu horário de trabalho na Assembleia?
Lídia – Trabalho até as 13h30min. Das 8h30min às 13h30min.
ZH – Por que só meio turno?
Lídia – Tenho que sair porque tenho uma mãe que não é boazinha, peço a eles para sair e cuidar dela.
ZH – A senhora trabalha à tarde na Assembleia?
Lídia – Não, de tarde não.
ZH – A senhora sempre fez só meio turno?
Lídia – É, às vezes eu faço. Às vezes trabalho o dia todo. São alguns dias. Não são todos os dias que eu saio.
ZH – Quando trabalhava no Departamento de Saúde, antes de trabalhar com o deputado, a senhora também saía mais cedo?
Lídia – Sim. Eu pedia para eles mesmo. Eles me davam remédio para ela (a mãe doente).
ZH – Atualmente quem libera a senhora é o deputado?
Lídia – É o assessor. Quem manda é o assessor mesmo.
ZH – O chefe de gabinete?
Lídia – É, o chefe de gabinete.
ZH – Servidores da Assembleia reclamam que pessoas ganham funções e não trabalham o horário todo.
Lídia – Só peço para sair de vez em quando. Às vezes, eu venho. Às vezes, eu volto. Depende como ela (mãe) está.
ZH – A senhora tem função gratificada (FG) de mais de R$ 10 mil. Seu salário bruto é de R$ 24,3 mil, superior ao teto salarial da Assembleia.
Lídia – Não. Meu básico é baixo, chega a R$ 3 mil.
ZH – Mas a FG é de R$ 10 mil.
Lídia – Só que não vem toda, desconta. Não dá muito.
ZH – A senhora incorpora a FG agora na aposentadoria?
Lídia – Eu espero que leve um pouquinho mais.
ZH – Qual é o seu salário?
Lídia – Dá oito e pouco.
ZH – No gabinete do deputado a senhora é só recepcionista?
Lídia – Sou recepcionista e faço as coisas que ele pede.
ZH – Seus colegas não reclamam de a senhora trabalhar só de manhã?
Lídia – É que não são todos os dias. Eu venho (em casa, no bairro Medianeira), vejo ela, quando ela tá bem, até volto.
ZH – Nós observamos sua rotina. A senhora não trabalhava de tarde.
Lídia – A gente combina que quando eles querem eu vou. Vou nas campanhas, saio, daí pago eles.
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