ZERO HORA 23 de novembro de 2014 | N° 17992
ROBERTO DA MATTA
Aos 14 ou 15 anos, ouvi, surpreso e um tanto assustado, a frase-título sair da boca do meu avô Raul. É que ele, um desembargador aposentado pelo Amazonas, um Estado até hoje marginalizado neste nosso Brasil, que vai ficando republicano à custa de uma extraordinária ladroagem geral, universal e oficial, pouco falava e menos ainda reclamava.
Dele eu me lembro do charuto, da proverbial impaciência com crianças pequenas e da cadeira de rodas onde um derrame cerebral o condenou a ficar sentado até morrer. A frase foi um desabafo por um estado físico complicado e pouco entendido. Pois quando as pernas vão mal, o corpo – que, na verdade, corresponde ao todo físico da pessoa – também fica em péssimo estado. Afinal, esse corpo é tocado pelas pernas.
Eu imagino o sofrimento desse Raul que foi duas vezes casado e por duas vezes enviuvou; que teve a possibilidade, mas jamais usou pessoalmente a onipotência teológica-jurídica dada ao papel dos juízes e desembargadores no Brasil; que – alto, honesto e belo – detestava depender ou dar trabalho, imóvel no vime de sua cadeira movediça.
O seu “vou mal das pernas” foi dito quando não pôde levantar-se para cumprimentar a viúva do seu filho mais amado. Um médico paradoxalmente perdido aos 30 e poucos anos por uma doença autoimune então incurável. A moeda mais procurada, a ovelha mais preciosa, o amor mais idealizado, a profissão que mais traria sucesso é justamente a que sumiu, não ocorreu e, por causa disso, foi desesperadamente procurada ou ficou como uma frustração traumática, destinada a um permanente retorno.
O tempo que, mesmo quando ficamos parados, passa de qualquer modo e, modesto, existe e se faz sem ser percebido, me fez mais velho do que esse “velho Raul”, morto aos 76 anos. Esse mesmo tempo faz com que, aqui e agora, eu venha a dialogar com o rapazinho inocente que, lá e então, jamais pensou no significado de uma paralisia que produziu um desabafo tão profundo e dramático como esse “vou mal das pernas” do meu avô Raul. De fato, para o menino que, como todo menino, vive correndo e, para quem, correr é viver; era simplesmente impossível compreender as frustrações de um prisioneiro do próprio corpo. Um corpo, aliás, que surge como um extraordinário subversivo e um grande traidor em todas as nossas doenças. Um traiçoeiro amigo íntimo do qual não podemos escapar.
Tive uma experiência idêntica, mas felizmente passageira, à do meu avô quando, num tombo, rompi o músculo da coxa de minha perna direita. Enfrentei as frustrações do me movimentar com ajuda de muletas, mas – pior que isso – de depender dos outros para coisas triviais. Pois o trivial é aquilo que fazemos sem pensar e fazer sem sentir é ser dono de si mesmo – algo raro neste cada dia mais imponente vale de lágrimas, no qual estamos com corpo e alma e, mais que isso, em corpo e em espírito. Um tendo a inevitável tarefa de dialogar com o outro.
Mal das pernas, virei ranzinza, tornei-me um chato impaciente – quase viro um medalhão machadiano. Claro que aproveitei as muletas para viver o papel cheio de pequenos e detestáveis privilégios de um deficiente. Mas o básico dessa experiência foi o de ser obrigado a ficar fora do mundo. De viver olhando as pessoas subindo uma escada ou se ajoelhando sem problemas.
Eu não podia me ajoelhar, eis o fato crítico. E aqui está o centro dessa narrativa. Se a pessoa não “cai de joelhos”, não anda de joelhos e não sabe se ajoelhar, ela não se entende e não consegue ouvir e falar com o outro. E não vendo o outro, ela fica invisível, pois sem o outro nada somos e o outro mais amado e necessário é justamente o que nos faz ajoelhar. Seja para prometer ou implorar amor, seja para jurar fidelidade, seja para implorar ajuda, seja para fazer isso que o Brasil – paralisado pelos dilemas lulo-petistas – não consegue realizar faz uma década e dois anos: pedir perdão a si mesmo, antes que seja tarde demais. Não basta, como afirma um veemente ministro da Justiça, que é petista, dizer que vai apurar. É preciso que algo substitua a mendacidade. E esse algo não é o banal e sempre falado “cortar a própria carne” ou o rotineiro mentiroso “doa a quem doer”. Não! É ajoelhar para reconhecer que estamos péssimos das pernas e fazer alguma coisa para sair da cadeira de rodas. Reconhecer não é fazer ou promover o acontecimento. E para nós, brasileiros comuns, o acontecimento esperado é ficar bom das pernas que movimentam o corpo.
No caso desse inusitado e histórico roubo da Petrobras, trata-se de acabar com a mendacidade e com as mistificações; trata-se de colocar um ponto final num sistema jurídico desenhado para criar e soltar quem é nobre ou, mesmo bandido, chega no centro da nobreza.
ROBERTO DA MATTA
Aos 14 ou 15 anos, ouvi, surpreso e um tanto assustado, a frase-título sair da boca do meu avô Raul. É que ele, um desembargador aposentado pelo Amazonas, um Estado até hoje marginalizado neste nosso Brasil, que vai ficando republicano à custa de uma extraordinária ladroagem geral, universal e oficial, pouco falava e menos ainda reclamava.
Dele eu me lembro do charuto, da proverbial impaciência com crianças pequenas e da cadeira de rodas onde um derrame cerebral o condenou a ficar sentado até morrer. A frase foi um desabafo por um estado físico complicado e pouco entendido. Pois quando as pernas vão mal, o corpo – que, na verdade, corresponde ao todo físico da pessoa – também fica em péssimo estado. Afinal, esse corpo é tocado pelas pernas.
Eu imagino o sofrimento desse Raul que foi duas vezes casado e por duas vezes enviuvou; que teve a possibilidade, mas jamais usou pessoalmente a onipotência teológica-jurídica dada ao papel dos juízes e desembargadores no Brasil; que – alto, honesto e belo – detestava depender ou dar trabalho, imóvel no vime de sua cadeira movediça.
O seu “vou mal das pernas” foi dito quando não pôde levantar-se para cumprimentar a viúva do seu filho mais amado. Um médico paradoxalmente perdido aos 30 e poucos anos por uma doença autoimune então incurável. A moeda mais procurada, a ovelha mais preciosa, o amor mais idealizado, a profissão que mais traria sucesso é justamente a que sumiu, não ocorreu e, por causa disso, foi desesperadamente procurada ou ficou como uma frustração traumática, destinada a um permanente retorno.
O tempo que, mesmo quando ficamos parados, passa de qualquer modo e, modesto, existe e se faz sem ser percebido, me fez mais velho do que esse “velho Raul”, morto aos 76 anos. Esse mesmo tempo faz com que, aqui e agora, eu venha a dialogar com o rapazinho inocente que, lá e então, jamais pensou no significado de uma paralisia que produziu um desabafo tão profundo e dramático como esse “vou mal das pernas” do meu avô Raul. De fato, para o menino que, como todo menino, vive correndo e, para quem, correr é viver; era simplesmente impossível compreender as frustrações de um prisioneiro do próprio corpo. Um corpo, aliás, que surge como um extraordinário subversivo e um grande traidor em todas as nossas doenças. Um traiçoeiro amigo íntimo do qual não podemos escapar.
Tive uma experiência idêntica, mas felizmente passageira, à do meu avô quando, num tombo, rompi o músculo da coxa de minha perna direita. Enfrentei as frustrações do me movimentar com ajuda de muletas, mas – pior que isso – de depender dos outros para coisas triviais. Pois o trivial é aquilo que fazemos sem pensar e fazer sem sentir é ser dono de si mesmo – algo raro neste cada dia mais imponente vale de lágrimas, no qual estamos com corpo e alma e, mais que isso, em corpo e em espírito. Um tendo a inevitável tarefa de dialogar com o outro.
Mal das pernas, virei ranzinza, tornei-me um chato impaciente – quase viro um medalhão machadiano. Claro que aproveitei as muletas para viver o papel cheio de pequenos e detestáveis privilégios de um deficiente. Mas o básico dessa experiência foi o de ser obrigado a ficar fora do mundo. De viver olhando as pessoas subindo uma escada ou se ajoelhando sem problemas.
Eu não podia me ajoelhar, eis o fato crítico. E aqui está o centro dessa narrativa. Se a pessoa não “cai de joelhos”, não anda de joelhos e não sabe se ajoelhar, ela não se entende e não consegue ouvir e falar com o outro. E não vendo o outro, ela fica invisível, pois sem o outro nada somos e o outro mais amado e necessário é justamente o que nos faz ajoelhar. Seja para prometer ou implorar amor, seja para jurar fidelidade, seja para implorar ajuda, seja para fazer isso que o Brasil – paralisado pelos dilemas lulo-petistas – não consegue realizar faz uma década e dois anos: pedir perdão a si mesmo, antes que seja tarde demais. Não basta, como afirma um veemente ministro da Justiça, que é petista, dizer que vai apurar. É preciso que algo substitua a mendacidade. E esse algo não é o banal e sempre falado “cortar a própria carne” ou o rotineiro mentiroso “doa a quem doer”. Não! É ajoelhar para reconhecer que estamos péssimos das pernas e fazer alguma coisa para sair da cadeira de rodas. Reconhecer não é fazer ou promover o acontecimento. E para nós, brasileiros comuns, o acontecimento esperado é ficar bom das pernas que movimentam o corpo.
No caso desse inusitado e histórico roubo da Petrobras, trata-se de acabar com a mendacidade e com as mistificações; trata-se de colocar um ponto final num sistema jurídico desenhado para criar e soltar quem é nobre ou, mesmo bandido, chega no centro da nobreza.
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