MOISÉS MENDES
Escuto parte da Voz do Brasil no carro, lá de vez em quando. Assim fiquei sabendo que um deputado foi à tribuna da Câmara para saudar a colheita da mandioca no semiárido.
Descobri, ouvindo trechos do discurso, que a mandioca tem o nome científico de manihot esculenta. E que somos o segundo maior produtor de mandioca do mundo, atrás da Nigéria.
Por essa e outras, A Voz do Brasil é um desserviço para a atividade pública. Ouço A Voz enquanto vou para casa, desviando das tampas de bueiros que continuam afundando em Porto Alegre. Desvio das tampas e dos buracos que conheço.
Há um buraco no asfalto, 50 metros antes do Zaffari da Cavalhada, que tem mais de ano. Gosto de apreciar os motoristas desviando bem antes do buraco conhecido.
Dia desses, me descuidei e caí numa tampa de bueiro afundada quando ouvi pela Voz do Brasil que o país vacinou mais de 16 milhões de fêmeas bovinas contra a brucelose. Imagine se termino o dia sem essa informação?
Foi pela Voz que ouvi também que a população pode contribuir para o aperfeiçoamento das normas sobre reforma de pneus, que está no Congresso (você entende de reforma de pneus?).
As notícias sobre a mandioca, os pneus e a brucelose vão me colocando a par do Brasil que não entraria na casa da gente (ou no carro, nesse caso) de outro jeito. Mas é duro aguentar as tampas de bueiros afundadas de Porto Alegre e as notícias da Voz do Brasil.
Sei que você vai dizer que A Voz nos informa sobre as vacinações, o Minha Casa Minha Vida, o Enem. É pouco. Para que serve A Voz? Para falar de um Brasil oficioso, dar notícias dos coronéis da política e bajular currais eleitorais.
E sempre tenho a sensação de que um dia, depois da trilha sonora da ópera O Guarani, do Carlos Gomes, será anunciada a invasão de Uruguaiana pelas Forças Armadas da Argentina.
Você sentiria falta da Voz do Brasil? Sei de gente que ouve o programa comendo pinhão ao lado do fogão a lenha em Itaqui. E de presidente de clube que fica corujando pra saber se o deputado vai mesmo discursar sobre a inauguração da nova cancha de bocha. Mas é pouco.
Depois disso tudo, você pode perguntar por que eu não coloco um som no rádio, um CD, um pen drive, enfim, por que não ouço música no horário em que A Voz do Brasil é programa obrigatório.
Porque, no fundo, sou viciado em A Voz do Brasil, tento e não consigo largar. Hoje, por exemplo, estou certo de que A Voz do Brasil vai informar que um deputado foi à tribuna para saudar a “renovação” do comando da Seleção.
Fracassaram os que torciam pela ressurreição da Seleção e do que ela ainda pode significar para nossa identidade, se é que ainda significa alguma coisa. Venceram a mesmice e o compadrio.
O Brasil arcaico, que ainda vai à tribuna para saudar a vacinação contra a brucelose, a colheita da mandioca e os coronéis e sargentos da política e do futebol, é muito pegajoso.
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