BELBUTE BLOG, 10/06/2014
*Por Eduardo Marques
França do século XVIII, ápice da Revolução Industrial, margens do rio Sena: trabalhadores se reúnem na “Place de Grève” para se opor às condições degradantes a que eram submetidos. Jornadas de trabalho dezoito horas por dia, salários ínfimos, condições perigosas de labor e trabalho infantil eram exemplos das mazelas rotineiras neste histórico período de transição da Humanidade. A tensão “trabalho versuscapital” chegara ao seu limite e provocara o surgimento do instrumento de pressão máximo a ser recorrido pela parte hipossuficiente – a parte fraca – da relação trabalhista: nascia o direito de greve.
Além de um fenômeno social, a greve, como direito trabalhista, tem a seguinte premissa básica: não há prestação de serviços por parte do trabalhador, e, em contrapartida, não há o pagamento de salários por parte do empregador. O objetivo é chegar a uma melhoria justa nas condições de trabalho, firmada de comum acordo entre representantes dos dois polos da relação e, na maioria dos casos, oficializada através de um instrumento de negociação coletiva de trabalho, de caráter contratual.
Com o tempo, essa sofrida conquista da classe operária da Revolução Industrial foi expandida a uma classe de trabalhadores que, à época e até hoje, goza de condições de trabalho e garantias completamente diferentes: os funcionários públicos. No âmbito público, os sujeitos da greve são outros: não há o trabalhador de carteira assinada, submetido às regras da Consolidação das Leis do Trabalho; há o funcionário público estatutário, cujo vínculo funcional se estabelece por lei, e não contrato de trabalho – por isso também não há direito à negociação coletiva de trabalho. Seguindo este raciocínio, também não há o empregador – há o Estado, cujas atribuições e deveres vão muito além daqueles inerentes a um mero empregador. O “corte de ponto” ocorre de acordo com interesses políticos. Acima de tudo, por razões óbvias, não existe a tensão “trabalho versus capital”. Logo: um mesmo direito, mas sujeitos e objeto completamente diferentes. Em razão disso, a decisão do Supremo Tribunal Federal em aplicar a lei de greve da iniciativa privada ao setor público “no que couber” parece tão incabível.
Há um terceiro sujeito na relação que se forma em uma greve do funcionalismo público, mas seu papel é ignorado em todo o processo: ocidadão. Trata-se do sujeito que viabiliza o cenário uma greve no setor público ao sustentar financeiramente o próprio Estado. O cidadão não tem direito de “entrar em greve” não pagando seus impostos ao ver suas necessidades mais básicas desatendidas. Em razão de tamanhas incompatibilidades teóricas e práticas, não é surpresa alguma que o exercício do direito de greve dos funcionários públicos fora, ao longo de sua existência ao redor do globo, ora amplamente liberado, ora particularizado, ora proibido e ora, até mesmo, criminalizado. Como se pode ver, a greve não é – ou ao menos não deveria ser – algo banal. Muito menos nos serviços públicos, onde imperam princípios jurídicos constitucionais como a eficiência e a continuidade.
No Brasil, até hoje o direito de greve do funcionalismo público não foi regulamentado especificamente. Em 2012 o país foi palco das maiores paralisações de servidores públicos em sua história. Aproveitando-se da falta de lei, os sindicatos de servidores públicos lideraram policiais civis e militares, profissionais do setor tributário, professores e burocratas de todas as esferas da federação contra seu “empregador” em uma interminável queda de braço – ironicamente, cruzando os braços.
Pesquisa publicada pela revista Valor Econômico em 2012 revelou que salários do funcionalismo público são, em média, 75% mais altos que os da iniciativa privada – realidade que provoca, inclusive, a migração da mão de obra qualificada do setor produtivo ao serviço público. Parcela significativa dos grevistas é, portanto, composta por verdadeiros “marajás do serviço público”, que cansaram de ter que ir apenasuma vez a Europa por ano. E não há nada de errado nisso! O indivíduo deve ter a liberdade de buscar sua felicidade da forma que achar melhor, com responsabilidade e sendo merecedor de recompensas por seus esforços e o valor de seu trabalho. Não é esse sistema que se instaurou no funcionalismo público. Podemos mencionar dois fatores que comprovam isso: a inexistência de meritocracia e a preponderância do favoritismo clientelista nos quadros do funcionalismo. Até mesmo servidores bem intencionados não vislumbram outra forma de angariar melhorias na sua condição financeira de outra forma que não o movimento paredista; outro fator é a irresponsabilidade dos sindicatos, que se aproveitam da ausência de lei e dos interesses políticos para, não raramente, deflagrarem movimentos abusivos, ilegais e, até mesmo, inconstitucionais. Tanta ganância, cinismo e incoerência se juntam à passividade do Estado diante da situação e nos fazem viver um verdadeiro “Estado Sindical”.
A lógica – ou, no caso, ilógica – deste ciclo vicioso é, em síntese, a seguinte: os funcionários já recebem salários muito acima da média e exigem aumentos também acima da média; seu empregador, o Estado, só poderia conceder tal melhoria com o que é arrecadado através de impostos; o cidadão paga os impostos; as greves do funcionalismo público prejudicam diretamente o cidadão, que produzindo menos, pagará menos impostos, tornando ainda menos viável a melhoria salarial ou de condições de trabalho pleiteadas. A título de exemplo, as greves da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA – e da Receita Federal, por si só, trouxeram prejuízos de 12 milhões de reais diários às empresas ligadas ao comércio exterior. Vale destacar que o Estado arrecada milhões de reais em impostos do que é lucrado por estas empresas.
*Por Eduardo Marques
França do século XVIII, ápice da Revolução Industrial, margens do rio Sena: trabalhadores se reúnem na “Place de Grève” para se opor às condições degradantes a que eram submetidos. Jornadas de trabalho dezoito horas por dia, salários ínfimos, condições perigosas de labor e trabalho infantil eram exemplos das mazelas rotineiras neste histórico período de transição da Humanidade. A tensão “trabalho versuscapital” chegara ao seu limite e provocara o surgimento do instrumento de pressão máximo a ser recorrido pela parte hipossuficiente – a parte fraca – da relação trabalhista: nascia o direito de greve.
Além de um fenômeno social, a greve, como direito trabalhista, tem a seguinte premissa básica: não há prestação de serviços por parte do trabalhador, e, em contrapartida, não há o pagamento de salários por parte do empregador. O objetivo é chegar a uma melhoria justa nas condições de trabalho, firmada de comum acordo entre representantes dos dois polos da relação e, na maioria dos casos, oficializada através de um instrumento de negociação coletiva de trabalho, de caráter contratual.
Com o tempo, essa sofrida conquista da classe operária da Revolução Industrial foi expandida a uma classe de trabalhadores que, à época e até hoje, goza de condições de trabalho e garantias completamente diferentes: os funcionários públicos. No âmbito público, os sujeitos da greve são outros: não há o trabalhador de carteira assinada, submetido às regras da Consolidação das Leis do Trabalho; há o funcionário público estatutário, cujo vínculo funcional se estabelece por lei, e não contrato de trabalho – por isso também não há direito à negociação coletiva de trabalho. Seguindo este raciocínio, também não há o empregador – há o Estado, cujas atribuições e deveres vão muito além daqueles inerentes a um mero empregador. O “corte de ponto” ocorre de acordo com interesses políticos. Acima de tudo, por razões óbvias, não existe a tensão “trabalho versus capital”. Logo: um mesmo direito, mas sujeitos e objeto completamente diferentes. Em razão disso, a decisão do Supremo Tribunal Federal em aplicar a lei de greve da iniciativa privada ao setor público “no que couber” parece tão incabível.
Há um terceiro sujeito na relação que se forma em uma greve do funcionalismo público, mas seu papel é ignorado em todo o processo: ocidadão. Trata-se do sujeito que viabiliza o cenário uma greve no setor público ao sustentar financeiramente o próprio Estado. O cidadão não tem direito de “entrar em greve” não pagando seus impostos ao ver suas necessidades mais básicas desatendidas. Em razão de tamanhas incompatibilidades teóricas e práticas, não é surpresa alguma que o exercício do direito de greve dos funcionários públicos fora, ao longo de sua existência ao redor do globo, ora amplamente liberado, ora particularizado, ora proibido e ora, até mesmo, criminalizado. Como se pode ver, a greve não é – ou ao menos não deveria ser – algo banal. Muito menos nos serviços públicos, onde imperam princípios jurídicos constitucionais como a eficiência e a continuidade.
No Brasil, até hoje o direito de greve do funcionalismo público não foi regulamentado especificamente. Em 2012 o país foi palco das maiores paralisações de servidores públicos em sua história. Aproveitando-se da falta de lei, os sindicatos de servidores públicos lideraram policiais civis e militares, profissionais do setor tributário, professores e burocratas de todas as esferas da federação contra seu “empregador” em uma interminável queda de braço – ironicamente, cruzando os braços.
Pesquisa publicada pela revista Valor Econômico em 2012 revelou que salários do funcionalismo público são, em média, 75% mais altos que os da iniciativa privada – realidade que provoca, inclusive, a migração da mão de obra qualificada do setor produtivo ao serviço público. Parcela significativa dos grevistas é, portanto, composta por verdadeiros “marajás do serviço público”, que cansaram de ter que ir apenasuma vez a Europa por ano. E não há nada de errado nisso! O indivíduo deve ter a liberdade de buscar sua felicidade da forma que achar melhor, com responsabilidade e sendo merecedor de recompensas por seus esforços e o valor de seu trabalho. Não é esse sistema que se instaurou no funcionalismo público. Podemos mencionar dois fatores que comprovam isso: a inexistência de meritocracia e a preponderância do favoritismo clientelista nos quadros do funcionalismo. Até mesmo servidores bem intencionados não vislumbram outra forma de angariar melhorias na sua condição financeira de outra forma que não o movimento paredista; outro fator é a irresponsabilidade dos sindicatos, que se aproveitam da ausência de lei e dos interesses políticos para, não raramente, deflagrarem movimentos abusivos, ilegais e, até mesmo, inconstitucionais. Tanta ganância, cinismo e incoerência se juntam à passividade do Estado diante da situação e nos fazem viver um verdadeiro “Estado Sindical”.
A lógica – ou, no caso, ilógica – deste ciclo vicioso é, em síntese, a seguinte: os funcionários já recebem salários muito acima da média e exigem aumentos também acima da média; seu empregador, o Estado, só poderia conceder tal melhoria com o que é arrecadado através de impostos; o cidadão paga os impostos; as greves do funcionalismo público prejudicam diretamente o cidadão, que produzindo menos, pagará menos impostos, tornando ainda menos viável a melhoria salarial ou de condições de trabalho pleiteadas. A título de exemplo, as greves da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA – e da Receita Federal, por si só, trouxeram prejuízos de 12 milhões de reais diários às empresas ligadas ao comércio exterior. Vale destacar que o Estado arrecada milhões de reais em impostos do que é lucrado por estas empresas.
O ano de 2014 não iniciou de outra maneira. Ao contrário do que o atual governo postula, não é o Estado que vem se mostrando onipresente, mas sim, as paralisações nos vários segmentos dos serviços assumidos. São consequências práticas da condição de absoluta ineficiência estatal que se consolidou quase que institucionalmente. Por outro lado, apesar das inúmeras desvantagens trabalhistas, há, na iniciativa privada, uma prestação de serviços conhecidamente mais enxuta e eficiente, e que raramente avança ao extremo de uma greve. Além de permanecer inerte quanto à regulamentação, o Estado tornou-se refém das próprias garantias legais concedidas ao funcionalismo. Contudo, passa à posição de cúmplice nos jogos de interesses políticos envolvendo as mais diversas classes de funcionários, os quais também, independentemente da legitimidade de seus pleitos, estão longe de arcar com a pior parte da insustentável situação que se estabeleceu. Ao pagar seus impostos e não poder contar com a prestação de serviços essenciais ao normal andamento de sua vida, quem segue no polo hipossuficiente da relação grevista é o cidadão. Como se não bastasse, esse “terceiro sujeito” acumula, curiosamente, os papéis antagônicos de principal financiador e maior prejudicado dos danos decorrentes da atual letargia grevista do funcionalismo público no Brasil.
* Eduardo Marques – advogado, especialista em Direito do Estado e funcionário público.
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